Faz doze anos que Lula foi eleito pela primeira vez Presidente do Brasil. Nessa altura, o que marcou a sua vitória foi a subida ao poder de uma esquerda de novo tipo que havia emergido na década de 1980 nos grandes estados industrializados do sul do país, com uma base operária e sindical de forte inspiração católica, da qual era exemplo máximo a carreira do próprio Lula, mais próxima porventura dos sindicatos da época de Getúlio Vargas do que dos comunistas e maoistas. Era uma experiência virtualmente inédita. O Partido dos Trabalhadores (PT) terá sido então o maior partido de esquerda do mundo a chegar ao poder por via eleitoral.

Todavia, nos doze anos seguidos em que tem estado no poder, o PT mal chegou a atingir 20% dos membros do Congresso da República (Senado e Câmara de Deputados) num sistema partidário caracterizado pela extrema pulverização regional e ideológica, bem como por um jogo de clientelas hoje já desconhecidas na Europa. E sendo assim, para conseguir formar governo e manter-se no poder, o novo presidente teve de fazer basicamente quatro coisas. Primeiro, montar uma maioria congressual à custa da useira e vezeira rede de favores, que o PT pretendeu a certa altura tornar ainda mais rígida através do famoso «mensalão» destinado a tornar sistemática a compra dos votos necessários para aprovar a legislação governamental. O preço que o PT tem vindo a pagar por isso não é só ético mas também político. Do ponto de vista eleitoral, tornou-se um partido como os outros ou pior.

Em segundo lugar, as intransigências mútuas entre um PT doutrinário e o partido de cariz social-democrata formado pelo anterior presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, o qual havia produzido as maiores inovações políticas do Brasil da época ao implantar a nova moeda (o «real») e ao fundar o PSDB, fizeram com que este ficasse de fora da aliança montada por Lula. Percebe-se que assim tenha acontecido mas é isso, precisamente, que está agora de novo em cima do tapete eleitoral com os dois novos protagonistas, Dilma pelo PT e Aécio pelo PSDB.

Em terceiro lugar, para grande surpresa das esquerdas, Lula fez sua a política de estabilização financeira do seu antecessor e foi nessa base que o Brasil pôde, graças ao disparo da globalização, crescer economicamente como há muito não sucedia. Desse passo, trocou o seu socialismo programático pela generalização dos programas assistencialistas que já vinham da presidência de FHC, como o «bolsa família», uma espécie de «rendimento mínimo» que atingirá hoje uns 50 milhões de beneficiários. É comparativamente pouco dinheiro para o novo gigante económico mas constitui uma fonte de votos sem fim, à qual se juntam os empregos públicos para tirar a população mais pobre da miséria em que vivia, sobretudo no Nordeste.

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Ora, assim como o PT trocara o socialismo pelo assistencialismo, Lula e Dilma trocaram a base eleitoral que os levara ao poder nos estados mais avançados do Sul e Sudeste por esses «grotões» contra os quais o partido lutara até então e que constituíam feudos equivalentes ao «coronelismo». Basta ver o mapa da última eleição presidencial para se dar conta de que, virtualmente, todo o sul desenvolvido se virou contra Dilma, tendo esta passado a dominar, como herdeira dos coronéis de outrora, todo o norte do país graças ao «bolsa família» e ao emprego público.

Por último, ao sabor da globalização e da ascensão dos BRICs, Lula e o PT compensaram o seu conservadorismo financeiro e assistencial com uma política internacional cada vez mais alinhada pelos «emergentes», a qual serve hoje de bandeira para unir as esquerdas ideológicas do mundo inteiro. Assim acabou o Brasil por assumir a liderança da oposição histórica latino-americana aos «ianquis», salvando a sua face esquerdista em benefício da frente dos países que conduzem actualmente a nova guerra fria contra o «imperialismo». É o mundo às avessas e foi a ânsia de conservar o poder que fez o PT soçobrar perante a corrupção que criticava quando estava na oposição.

Adicionado à quebra do crescimento, foi isto que uma clara maioria dos brasileiros rejeitou na primeira volta das eleições. O maior exemplo é o estado de S. Paulo, onde o PT outrora se forjou e agora Dilma tem os piores resultados. A nova geografia eleitoral do Brasil faz, pois, do candidato do PSDB e da própria Marina, os anunciadores de um processo de modernização política e económica contra o estatismo assistencialista que constitui hoje a base de poder do PT. As suas candidaturas remetem assim para a vaga de protestos que marcou os últimos anos do regime do PT. Aécio poderá propiciar uma mudança e, simultaneamente, voltar a uma política internacional mais consentânea com a matriz sócio-cultural brasileira. A segunda volta da eleição presidencial será apertadíssima e constituirá, sem dúvida, um ponto de viragem para esse Brasil cujas forças mais modernas pretendem decididamente dar um passo político em frente.