Até agora, só tenho visto comentários ideológicos acerca da eleição presidencial, como se o antigo presidente Lula (2003-2011) tivesse eliminado moralmente o seu adversário, o presidente Bolsonaro no activo desde 2019 a 2022. Com efeito, a distribuição dos votos do primeiro para o segundo turno permaneceu praticamente sem ser analisada, como se não tivesse havido significativas mudanças dos eleitores conforme os dois candidatos e os estados federais. Isto para não falar dos programas dos dois candidatos finais acerca dos quais não tem havido qualquer comentário por parte dos analistas nem dos caracteres político-partidários de cada um dos dois candidatos.

Primeira nota: do primeiro para o segundo turno, o número de votantes aumentou de 116 milhões para 124, tendo esta diferença de mais de 8 milhões sido dividida muito desigualmente entre os dois finalistas em 6 milhões de novos eleitores para Bolsonaro e apenas mais 2 para Lula, com uma diferença final mínima inferior a menos de 2%. Com efeito, Lula levava um avanço de mais de 5% dos votos do primeiro para o segundo turno, tendo conquistado apenas mais 3 milhões de votos (2,5% do total), enquanto Bolsonaro conquistou mais 6% dos votantes ficando a menos de 2% do vencedor.

Numericamente falando, Bolsonaro esteve muito mais perto de um «empate» do que um «esmagamento». Em si, isso não desvaloriza a vitória de Lula. Em contrapartida, por natureza pessoal e por pressão mediática, Bolsonaro ficou virtualmente sem nada para argumentar, como de resto fez ao longo da sua presidência.   Em contrapartida, seja lá qual for a ideologia ou simplesmente os diferentes comportamentos pessoais de cada um dos candidatos, o certo é que, apesar da sua manifesta incapacidade oral, Bolsonaro conquistou mais de metade dos novos votantes (+6%) enquanto Lula recuperou apenas 2,5% oriundos previsivelmente de parte dos eleitores da candidata do MDP, Simone Temet, convidados pela terceira candidata a votar no «leader» do PT.

Entretanto, toda a mídia se concentrou exclusivamente na derrota do ainda presidente, confirmando a sua incapacidade de se exprimir politicamente assim como de lidar com o evento institucional. Imagine-se só como reagiria a mídia local e internacional se o eleitorado tivesse trocado um escasso milhão de votos entre os dois candidatos no conjunto de 124 milhões de votantes no país inteiro: sensivelmente menos de um por cento!

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Com efeito, na segunda volta da eleição, Bolsonaro granjeou um aumento de sete milhões de votantes da primeira para a segunda volta eleitoral, enquanto Lula conquistou apenas três novos milhões à senadora Temet, o que é extremamente importante para quem não despreza os perfis sócio-económicos dos estados federais brasileiros. Vejam-se, com efeito, os indicadores do chamado Índice do Desenvolvimento Humano (IDH), da alfabetização e do PIB de cada Estado, os quais permitem avaliar o comportamento eleitoral dos ditos Estados. Por outras palavras, a diferença nacional de menos de 2% entre os dois candidatos funciona de forma politicamente muito diversa conforme se está perante o Nordeste ou São Paulo e os Estados do Sul para não falar do Distrito Federal…

É neste sentido que, para além da própria composição de órgãos políticos como o Senado (81 eleitos) e a Câmara de Deputados (513), os quais não só têm poderes sobre o Presidente e o seu governo como podem depô-los, conforme de resto isso tem ocorrido com alguma frequência, como Lula tentou fazer contra Fernando Henrique Cardoso quando este era presidente… Quando cessaram os dois primeiros mandatos de Lula (2002-2009), a presidência foi entregue a Dilma Rousseff com tal falta de oportunidade que esta foi «demitida» e a presidência confiada durante ano e meio a um vice de quem poucos se lembrarão, Michel Temer do PMDB, partido cúpula da corrupção política reinante do Brasil…

Foi nesta altura que o sistema aparentemente comandado por Lula se deixou arrastar para a alta corrupção de dirigentes do Partido dos Trabalhadores. Daí veio o falhanço do mesmo Fernando Haddad, que fôra ministro da Educação de Lula e de Dilma, perante a imprevisível candidatura do inqualificável Bolsonaro. Este viria a ser eleito presidente da República à segunda volta (2019-2022) e tornou-se inimigo figadal do PT transformando-se numa espécie de mobilizador dessas classes médias-baixas urbanas convertidas às seitas religiosas que lhe granjearam praticamente metade do total de votos…

Sucede, entretanto, que após um virtual eclipse do PT, o antigo presidente Lula, agora com 77 anos, reconquistou a liderança do partido enquanto, segundo analistas menos crentes na «bondade natural» do partido observaram a sua evolução na direcção de uma «esquerda internacional» que hoje apoia a Rússia contra a Ucrânia, bem como as actuais «esquerdas latino-americanas» em relação às quais o PT teria uma crescente dependência. No extremo oposto, o derrotado Bolsonaro parece já estar a ser ultrapassado por um «populismo maciço de extrema-direita», que neste momento já estará ou não a imaginar uma nova tomada do poder pelas Forças Armadas…