“A história não se repete, mas ensina”, in: Sobre a Tirania. Vinte Lições do Século XX de Timothy Snyder.

Não podemos compreender George Orwell sem conhecer a Guerra Civil Espanhola e a influência que esta teve na sua obra e na “previsão” de um mundo distópico que situou para lá de 1984.

A Guerra Civil Espanhola iniciou-se, para quem a vê como um evento isolado, com o pronunciamento ocorrido em 18 de julho de 1936. Durante quase três anos, as partes em beligerância provocaram a destruição do país e a desintegração da sociedade e do seu tecido produtivo. Espalharam a fome e o luto com mais de 400.000 mortos só durante o confronto. De um lado da trincheira estavam as forças republicanas, congregadas numa Frente Popular, do outro estavam os nacionalistas. Os primeiros, conotados com a esquerda,  venceram os seus opositores de direita (CEDA e vários outros) nas eleições que ocorreram em 16 de fevereiro de 1936. Neste acto eleitoral, a Frente Popular recebeu 4.654.116, elegeu 278 deputados, enquanto uma direita, dispersa por muitos partidos, teve 4 503 524 votos, mas só elegeu 124 deputados dos quais 88 pertenciam ao CEDA. Esta vitória permitiu aos republicanos reeditar o seu programa de 1931 e um conjunto de reformas políticas cuja prossecução fora interrompida após a derrota eleitoral de 1933.

Com as eleições de 1936, as forças de esquerda tentaram implementar o seu programa, enquanto os opositores se acantonavam inconformados por a “sua verdade” não se ter traduzido no apoio que desejavam. Nunca aceitaram o resultado nas urnas e tentaram na “25ª hora” impor uma posição que o povo não sufragara. E assim, as forças “descontentes” tomaram as armas e marcaram o seu ponto de vista com o pronunciamento de 18 de julho. Até aqui nada de extraordinário. Frequentemente, demasiadas vezes, os derrotados não conformados com o resultado de um acto eleitoral tentam, por outros meios, atingir o que o veredito popular não lhes concedeu.

A data do pronunciamento assinala no calendário o início da Guerra Civil Espanhola, mas, na realidade, o estado de “guerra civil” já tinha surgido durante a ditadura do general Miguel Primo de Rivera. Um “mal-estar” que se acentuou em 14 de abril de 1931 quando Afonso XIII abdicou. A Espanha entrou então num período convulsivo com o início da II República, a vitória das forças republicanas nas eleições autárquicas e a proclamação da II República. O período que permeou entre a proclamação da II República e o pronunciamento a 18 de julho de 1936, ainda que oficialmente não de guerra civil, foi uma época de “preliminares” para o que eclodiria mais tarde.

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Em 16 de julho de 1990, o líder do soviete supremo da Ucrânia, antecipando os acontecimentos, iniciou o processo de alterações à soberania que terminou em 24 de agosto de 1991 com a proclamação da independência da República da Ucrânia. Três meses depois, em 02 de dezembro de 1991, Boris Yeltsin reconheceu a independência da Ucrânia, no que foi um ato preparatório da dissolução da URSS a 26 de dezembro de 1991.

Com a declaração de independência da Ucrânia, instalou-se um clima de crispação entre os que queriam uma Ucrânia independente, e os que mais russófilos ou saudosistas, se recusavam vê-la como uma nação soberana com ligações ao ocidente. Com a dissolução da URSS e a implosão comunista, demorou algum tempo até que o “urso russo” recuperasse as forças e estar em condições de desferir o seu “abraço” aos países vizinhos. Este período de “inércia” russa podemos datá-lo até 04 de março de 2012, momento da eleição de Vladimir Putin para um “segundo consulado”. É por esta altura que a Rússia assume abertamente um pendor imperial cuja deriva já era previsível na guerra da Chechénia e da Geórgia.

Tendo a Ucrânia um vizinho tão ávido de esplendor e influência geoestratégica, este dificilmente iria permitir uma soberania que fosse além da Bielorrussa. É neste contexto de vizinhança que a luta entre os nacionalistas ucranianos e o grupo “secessionista” do Donbass e da Crimeia deve ser interpretada. Não sabemos exatamente a sua representatividade, mas a avaliar pelas eleições de 2019 a sua dimensão deveria ter algum peso. Minoritário ou não, este grupo russófilo teve uma presença sempre latente e, à medida que o vizinho russo foi ganhando músculo, também a luta foi subindo de tom.

Se procurarmos um marco para a atual guerra da Ucrânia, é entre 18 e 23 de fevereiro de 2014, na praça da Independência (Maidan) que encontramos o agudizar de um conflito que, desde a Independência, opunha forças políticas desejosas de integração no mundo ocidental, a outras que na saudade viam a única fórmula de vida aceitável. Tal como na Guerra Civil Espanhola, em confronto temos, de um lado as forças saudosistas e autocráticas e do outro, as que conotamos com a luta pelo que entendiam(em) ser a liberdade.

Se a luta pela “liberdade” versus saudosismo e autoritarismo é característica em ambos os conflitos, também os apoios internacionais eram semelhantes tanto na substância como na consistência. Na Guerra Civil Espanhola os países directamente interessados no conflito colocaram-se dos dois lados da barricada. Os nacionalistas eram apoiados pela Itália e pela Alemanha, no que foi visto como um ensaio para as suas aspirações imperiais. Do outro lado, estavam diversos países, uns mais democráticos do que outros, mas todos se opunham às aspirações imperiais da Alemanha. A França, a Inglaterra e os EUA representavam na altura o mundo democrático, mas, se por um lado eram impelidas no apoio à legitimidade democrática do Estado Espanhol, por outro tinham dificuldade em ajudar uma fação beligerante conotada com o bolchevismo internacional. A posição destes países resumia-se a um apoio envergonhado, ou, mais grave ainda, à disponibilidade para sacrificarem os princípios por uma “real politique”, medrosos que estavam das causas marxistas os contaminarem dentro de portas. Fosse por que motivo fosse, a história haveria de os responsabilizar por não terem apoiado devidamente as forças republicanas. Todos aqueles países que tinham a “obrigação” de ser ter perfilado inequivocamente desse lado da barricada, trocaram o apoio à luta pela liberdade, por “mais-valias” internas que a história tratou de remeter à insignificância. França, Inglaterra e EUA, com receio que a Espanha se tornasse num estado marxista e um polo de destabilização, optaram por uma inatividade serôdia. A tibieza do apoio ocidental resultou no empoderamento das pretensões nazis, no acordo Molotov-Ribbentrop e duas semanas depois deste, no início da II Guerra Mundial.

Quem ler Homenagem à Catalunha de George Orwell vai perceber de viva-voz, as dificuldades que resultaram do parco apoio das democracias ocidentais à luta pela liberdade e a forma titubeante como expressaram esse apoio. O relato de guerra de Orwell, recheado de “cenas gagas”, magnificamente levadas à tela pelos Monty Python, é um retrato dos limitados recursos nacionalistas, da dissimulada política externa de França, EUA e Inglaterra, e a forma como uma URSS bolchevique, em pleno período de transformação estalinista fez, durante a Guerra Civil Espanhola, derivar o COMINTER de uma posição internacionalista, para uma outra calculista e, acima de tudo, anti trotskista. George Orwell enquanto militante do Partido Marxista de Unificação (POUM), um partido trotskista, retrata bem este mundo e esta época de dissimulação e interesse mesquinho.

Na Ucrânia de 2022, os apoios externos são semelhantes, ainda que alguns tenham passado de defensores da liberdade para agressores e vice-versa. A Rússia assume neste conflito o papel do beligerante nazi da Guerra Civil Espanhola e os países do eixo passaram para a defesa da liberdade. Mas tal como na Guerra Civil Espanhola, os que estavam do lado da liberdade, se de início pareciam ter uma posição de defesa dos princípios, com o tempo e o acumular de dificuldades, esfriaram o entusiasmo, deixando que os egoísmos internos ganhassem protagonismo. Tal como a França, a Inglaterra e os EUA no conflito Ibérico, na guerra da Ucrânia o mundo ocidental, o mundo que defende a liberdade em que acredito, parece ter entrado num desânimo onde as suas ações estão, infelizmente, nos antípodas das intenções. É confrangedor ler nas notícias as dificuldades diárias dos que lutam pela liberdade, enquanto o ocidente vai sendo tomado por um angustiante conformismo de inevitabilidade.

Tal como na Guerra Civil Espanhola, onde a fação vencedora se sentiu habilitada e legitimada para vergar o mundo aos seus desejos, é bem possível que na guerra da Ucrânia o beligerante imperial se sinta inspirado a dar largas à sua “gula”. A dificuldade do governo americano em respeitar os princípios e cumprir os compromissos, e uma eventual vitória de Trump nas eleições de 2024, são elementos desmotivadores para uma europa sempre a reboque. Uma europa egoísta, dependente do “Tio” para se defender do bullying no seu próprio “recreio”, faz temer o pior. Uma europa pressionada pelo expansionismo russo e pela indiferença americana que, de “costas voltadas”, diz que a verdadeira ameaça lhe vêm do poente, é uma América que prefere centrar-se na ameaça “económica” em detrimento da defesa da liberdade.

A posição comprometida da Hungria, seguida em 2023 pela Eslováquia, vai rapidamente contaminar outros, alegando os futuros “ratos” que esta guerra provoca demasiadas vítimas, que a vitória ucraniana não vai trazer segurança e que uma posição de vantagem da Rússia é a única que garante paz. Já ouvimos estes mesmos argumentos na Guerra Civil Espanhola e demoraram apenas 5 meses para a II Guerra Mundial se iniciar. Cinco meses, vamos agora ver os que aguentamos!

George Orwell de novo. Quando em 2022 Dmitri Medvedev sugeriu que o domínio russo deveria estender-se de Vladivostok a Lisboa, gerou uma onda de sorrisos sardónicos, mas em boa verdade foram mais sorrisos de ignorância que de outra coisa. Este discurso, aos nossos olhos, parece vindo de um “lunático”, mas o que nos deveria preocupar é que o “louco” está bem acompanhado, e as ideias que professa não são estrategicamente desalinhadas. Dos muitos que publicamente as têm assumido, o último que publicamente as proferiu foi Vladimir Solovyov. Este pivot da “Russia One”, indefetível apoiante de Putin, num recente programa televisivo afirmou que os EUA deviam abandonar as suas bases na Europa e pôr fim às permanentes “ameaças” que a sua presença a Este e uma europa ocidental militarizada representam para a segurança russa.

Curiosamente, por muito esotéricas que estas ideias nos pareçam, antes de o serem do domínio do “delírio”, já o eram do mundo da ficção. Em 8 de junho de 1948 George Orwell publicou 1984, o seu romance de escol e uma das obras de culto do século XX. Em 1984, Orwell transporta-nos para um mundo distópico onde Winston Smith, o protagonista, descobre pensamentos e sentimentos não permitidos pela autoridade e para os quais não existiam vocábulos adequados. Liberdade e amor eram sentimentos desconhecidos, e há muito banidos num processo de eliminação em dois passos. Primeiro negava-se que se tivessem pensamentos ou sentimentos, e depois, num golpe de magia, apagava-se a memória de os ter tido e de os ter apagado. Esta técnica de oblívio que o autor designou de “duplipensar” permitia que factos contraditórios pudessem coexistir sem conflito num mesmo discurso. Contudo, para limitar o pensamento era indispensável que as palavras se adequassem à negação da individualidade. É assim criada a “novilíngua”, uma nova forma de expressão onde uma frase poderia conter uma afirmação e seu contrário. Na “novilíngua” o vocabulário tinha de ser reduzido ao mínimo para que as “crimideias”, i.e., os “pensamentos errados” não fossem possíveis. Não havia liberdade de pensamento, porque com o “duplipensar” as “crimideias” eram eliminadas, e com o uso da “novilíngua” o pensamento livre não teria como ser expresso.

Neste mundo Orweliano o partido do poder, o “Socing” (socialismo inglês), era liderado por uma autoridade, o “Big Brother”, que conjuntamente com os membros do partido controlavam o cidadão e vigiavam as suas ações através de um sistema de “telas” bidirecionais que permitia que todo o cidadão visse e fosse visto.

Todo o texto é riquíssimo em metáforas similares, todas elas resultantes da genialidade de Orwell. Destas, e são tantas, não resisto a sublinhar as que descrevem o poder, i.e., os “ministérios”. Divididos em quatro; Ministério da Verdade – responsável pela falsificação de documentos e literatura como forma de reescrever o passado e a verdade. De acordo com o Ministério da Verdade, o partido era sempre infalível, era-lhe impossível errar; Ministério da Paz – responsável pela guerra e pela manutenção do “animo na sociedade”; Ministério da Abundância – responsável pela gestão dos parcos recursos alimentares; e o último, o Ministério do Amor – o mais sinistro e temido de todos, era responsável pelo controlo dos pensamentos e, quando necessário, um instrumento do “Socing” para a “lavagem cerebral” dos dissidentes do regime.

A crítica aos regimes autocráticos era demasiado evidente e, num período pós IIGM em que o ocidente pretendia ter boas relações com os dirigentes da URSS, sendo este texto um libelo acusatório a esse regime, foi tido como desajustado aos desígnios da hipocrisia diplomática de então. Pretendiam os “fariseus” evitar um clima de “guerra fria”, mas acima de tudo, impedir que “o urso” conhecedor da sua força a viesse a utilizar. Foi por este motivo que George Orwell, bem como muitos outros que o denunciaram e o descreveram como autocrático e imperial foram durante anos impedidos de publicar a sua visão.

E na visão de Orwell o mundo distópico não estava acantonado a um único país, mas era algo que como um “câncer” se disseminava pelo planeta. O mundo Orwelliano dividia-se em três blocos e uma zona em disputa. A Eurásia correspondia à placa euroasiática, a Estásia à zona média da placa asiática, sensivelmente ao território da China e Mongólia e a Oceânia que incluía as américas, as ilhas britânicas e a austrália. O resto do mundo, a placa indiana e os 2/3 norte do continente africano correspondiam à zona em disputa.

Com 2024 a iniciar-se, as eleições nos EUA e uma possível vitória de Trump, o mundo arrisca-se a ficar dividido entre uma Oceânia contida no slogan “America First”, sempre associada aos indefetíveis aliados, Canadá, Ilhas Britânicas e Austrália; uma Estásia representada por uma China que anseia cumprir os desígnios de potencia regional e anexar Taiwan (com a “America First” e Trump presidente, é já no próximo mandato), e os apetites territoriais por uma Coreia dividida e um Japão que poucas opções terá dentro da política de uma América mais preocupada com o seu umbigo; e por último em Eurásia geograficamente de Lavrentya a Lisboa, um império que é explicitamente desejado por líderes russos e opinion makers, mas que também é inerente à ideia de uma “America First”, e está também presente no horizonte de alguns líderes europeus. Quando Viktor Orbán diz que a actual administração dos EUA e a sua posição na europa, são o seu principal inimigo, o que Órban nos sugere é que comunga com a visão de uma europa Orwelliana dos líderes do Kremlin.

A distopia descrita por Orwell pode-nos parecer uma verdade sépia, uma iniquidade, mas a realidade é que, inequivocamente já estivemos mais distantes. Diz-nos a história que a vitória das forças que se opõem ao nosso modo de vida só param a sua ambição quando derrotadas. Na Guerra Civil Espanhola, a derrota da liberdade resultou num preço maior porque o mundo livre não se empenhou um pouco mais.

Uma desistência da Ucrânia e da sua luta pela liberdade só alimenta a voracidade russa. Os regimes autocráticos necessitam de uma cultura marcial, ambições expansionistas e ideação de inimigos para congregarem a sua população numa luta do “nós” contra os “outros” e através desse processo de luta controlarem a vontade dos seus cidadãos e inculcarem estes objetivos no superego coletivo. Se o ocidente continuar o trajeto de derrocada civilizacional para um futuro distópico, a visão de Orwell em 1984 poderá ser uma realidade bem mais próxima. Se o “duplipensar” e a “novilíngua” da cultura “woke” continuar a marcar a agenda do ocidente, se desistirmos da Ucrânia, se Trump for eleito em 2024 e se depois de eleito num acto de “duplipensar” “indulgenciar” os seus crimes, se permitirmos que os dirigentes do Kremlin e a “Geração Z” estendam o domínio geográfico e a sua visão de liberdade, muito provavelmente o mundo e a geopolítica de 1984 pode não ser uma distopia mas a caricatura de uma realidade já dentro de portas.

Um bom 2024.