Sobre a segunda volta das eleições francesas, a principal mensagem da comunicação social é a “surpreendente” derrota da “extrema-direita”, depois do grande susto que o seu êxito havia proporcionado uma semana antes. Os adjectivos são os mais imaginativos, procurando traduzir a sensação agradável que surge depois de se ter afastado uma negra e temível tempestade. E não é fácil encontrar nos meios escritos como foram realmente os votos expressos, pois o que é em geral colocado em evidência é o número de deputados eleitos pelos três principais partidos ou coligações, assim como os possíveis entendimentos para a formação de um governo.
Esta postura da comunicação social tende a esconder o que é preciso revelar: a verdadeira atrocidade anti-democrática que praticaram, numa improvável (ou talvez não) geringonça, o centrão de Emmanuel Macron e a esquerda em coligação liderada por Jean-Luc Mélenchon. Tendo apenas um total de 76 deputados obtido na primeira volta mais que 50% dos votos, foi realizada uma segunda volta nas restantes 501 circunscrições, para eleição de outros tantos deputados, podendo apresentar-se os partidos que na primeira volta tivessem obtido pelo menos 12,5% dos votos. Logo na noite da primeira volta Mélenchon mostrou o caminho para a geringonça: a sua coligação iria desistir em cada uma das circunscrições em que não figurasse em primeiro ou segundo lugar; ou seja, dava de bandeja os seus votos a Macron, obviamente tentando impedir a eleição de um deputado da direita.
E o que fez Macron, apesar de toda a sua retórica contra a esquerda? Uniu-se a esta, procedendo exactamente da mesma forma, retribuindo de bandeja os seus votos a Mélenchon, através da desistência sempre que estivesse em terceiro lugar. Assim, em muitas circunscrições em que o partido de Marine Le Pen e Bardella era o mais votado, passou ao segundo lugar, ficando sem o deputado que lhe correspondia, e que era o escolhido pela maioria dos votantes. Maioria da primeira volta, entenda-se, pois na segunda já houve uma maioria artificial que desalojou a maioria natural.
O resultado desta artimanha é, em síntese, o seguinte: a direita de Le Pen, com 37% dos votos, foi o partido mais votado, e mais votado do que na primeira volta, mas obteve apenas 25% dos deputados; a esquerda de Mélenchon, com 26% dos votos conseguiu 31% dos deputados; e o centro de Macron, com 24% dos votos ficou com 28% dos deputados. Ou seja, e em grande medida, votos para uns, deputados para outros. Vista a mesma realidade de outra forma, à direita foi atribuído um deputado por cada 71 mil votos, o centro precisou de 41 mil votos para cada deputado, e a esquerda teve direito a deputados a preço de saldo, cada um por uns meros 39 mil votos.
Muitos dirão que são as regras do jogo democrático. Mas são as regras de um jogo antidemocrático. Sem dúvida estamos em presença de uma clara deturpação da vontade do povo expressa nas urnas, um golpe à democracia.
Analisando os factos apenas do ponto de vista democrático, e não tomando partido por qualquer dos contendores, faço votos de que esta sociedade entre Macron e Mélenchon tenha sido feita com boa intenção do ponto de vista do povo e que seja boa para os franceses, e para os europeus. Mas a democracia é outra coisa.
Há mais de dois mil anos que sabemos o que acontece às democracias em que se toleram os jogos de bastidores que desvirtuam a vontade dos eleitores: a república romana, sólida como uma rocha, desfez-se em umas décadas de sucessivos golpes à democracia. O primeiro foi tolerado, para o segundo já havia um precedente, e assim sucessivamente até à morte do regime. A pergunta que deixo no ar é esta: – Não serve de nada à humanidade saber o que lhe vai acontecer?