A contínua e desproporcional (às tentativas legislativas no sentido oposto) desproteção que se vai insistindo em dar às vítimas de violência doméstica é alarmante. Tornamos a violência doméstica num crime público, precisamente numa lógica de proteção e de entendimento de que já é difícil condenar alguém por um crime, tantas vezes sem testemunhas, e que se passa dentro de quatro paredes. Entendemos o difícil papel dos juízes nesses casos. E, portanto, o crime é público – ajuda, no mínimo, a sensibilizar para a gravidade da questão, não só para as vítimas como para a sociedade em geral, ou não? Aparentemente, não.

Um crime manifesto de violência doméstica, uma óbvia ofensa à integridade física, cometido não entre quatro paredes, mas em “praça pública” e, ainda assim, temos uma juíza – do Tribunal de Paredes – que decide não existir «crueldade, insensibilidade e desprezo» suficientes para qualificar os atos como violência doméstica? Uma juíza decide, por ordem de razão, ir contra o intuito do legislador quando tipificou este crime (sem qualquer menção a esses requisitos, cuja ausência foi aparentemente suficiente para não condenar o arguido por violência doméstica e resultar numa absolvição). É grave.

Mais grave ainda, porque os factos foram efetivamente dados como provados – o arguido terá agarrado a mulher pelo pescoço e pelo cabelo, arrastando-a pela rua – e de apesar de provados, foram simplesmente insuficientes para os qualificar como maus-tratos. Note-se, que do artigo 152º do Código Penal não decorre interpretação nem definição do que seja qualificado como maus-tratos. Atrevo-me a dizer que tal escolha (propositada) terá sido feita com o intuito de abranger um maior leque de situações de violência doméstica, que se traduzem numa violência específica que não o seria se não fosse contra as pessoas tuteladas em específico por este artigo – as ditas vítimas – e não, como este tribunal decidiu, para propor uma interpretação tão restritiva que possa excluir mais vítimas do que as que protegerá.

Até quando vamos continuar a impor às vítimas que saltem obstáculos metafóricos para poderem usufruir da proteção que a lei lhes quer dar? Até quando vamos subindo o limiar mínimo de violência e desrespeito que um homem tem que ultrapassar até podermos condenar? Até quando é que as segundas e terceiras e quartas oportunidades a ofensores vão ser mais valorizadas do que a primeira oportunidade às vítimas para se defenderem judicialmente? De que serve a constante e árdua tarefa de proteção das vítimas, de se ter transformado a violência doméstica num crime público, de constante progresso histórico neste sentido, se temos decisões destas, se temos ainda juízes destes. Não basta só o progresso legislativo, especialmente se é contrabalançado pela mentalidade retrógrada de alguns magistrados – desde citações da bíblia para fundamentar decisões, a interpretações prejudicialmente e desproporcionalmente restritivas de crimes que já são difíceis de condenar…

Parece que no que toca à proteção das vítimas de violência doméstica, quanto mais se tenta andar para a frente, mais passos se dão para trás nos tribunais portugueses.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR