“Falta de sexo serve para justificar agressões de homem a mulher para juízes da Relação do Porto” diz a manchete de vários jornais.

Infelizmente, não é com grande surpresa, nos dias que correm, acordar e ser confrontada com um cabeçalho destes. Sensacionalista? Talvez. Mas que apela ao nosso sentido de indignação social e nos impele a procurar o acórdão em causa de modo a retirar as nossas próprias conclusões? Certamente.

A verdade é que, enquanto jurista, há sempre a ressalva por baixo da indignação (“isto deve estar descontextualizado, não pode ser tão linear assim”, enfim…) mas depressa se quebra esta ingénua ilusão de que um acórdão de um tribunal superior esteja acima do vergonhoso nível de decisões que frequentemente adornam as manchetes portuguesas.

Afinal, o que está aqui em causa? Para todos os que terão alguma dificuldade ou (legítima) falta de vontade de examinar a massa azul de texto do acórdão em causa, permitam-me que pinte os pontos essenciais, muito sucintamente.

O arguido, casado com a ofendida há mais de 50 anos, é acusado de dois crimes de violência doméstica. Foi detido em flagrante delito, pela polícia, que presenciou as ameaças de morte (que foram repetidas até à esquadra) e agressões físicas que se repetiram apesar de já se encontrar algemado. É acusado de agressões físicas, ameaças com facas, violações repetidas, injúrias e violência psicológica ao longo de 50 anos.

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Trata-se de um recurso pelo Ministério Público relativamente às medidas de coação aplicadas pelo tribunal de 1ª instância, que considerou insuficientes. No entanto, o objeto (e improcedência) do recurso pouco releva para a análise das afirmações proferidas pelo Tribunal que, ainda que suscetível de críticas (várias), é o resultado de uma ponderação jurídica absolutamente válida.

A questão revoltante, e essencial, aqui é precisamente a narrativa desculpante e menosprezante de crimes especialmente gravosos (como assume o próprio tribunal, antes de prosseguir por um perigoso caminho:“Se o crime é grave em termos legais a ponderação dos factos restritos nos termos elencados retira-lhe muita dessa gravidade legal”).

E que factos são estes que o tribunal considera como extremamente atenuantes? Vejamos:

Em primeiro lugar, o facto de o arguido ser um doente cancerígeno (ainda que comprovadamente violento, ter demonstrado um comportamento agressivo durante todo o seu primeiro interrogatório, bem como uma “atitude intimidatória” e “persistência criminosa” como, de resto, relatou o Ministério Público.);

Em segundo, o facto de o arguido “ingerir bebidas alcóolicas”. Sem comentários.

Em terceiro, o facto de haver uma “ausência de relacionamento sexual por parte da esposa”. Este ponto é particularmente interessante e o tribunal tece considerações adicionais sobre a natureza do homem e da mulher serem diferentes, e existirem fatores de “idade e de apetência para o ato” e que a “deficiente compreensão desse fenómeno” é que leva a “conflitos entre o casal […] como parece ser o caso”. É, de facto, interessante reparar como o tribunal equipara duas imputações de crime de violência doméstica a “conflitos entre o casal” e é obviamente a primeira pedra no percurso que o Tribunal da Relação do Porto faz, e que culmina com a opinião de que seria mais útil aconselhamento psicológico, para “ajudar” o arguido e abordar os seus problemas de “inferioridade e controlo de impulsos”, de modo a “potenciar a possibilidade de criação de uma sã convivência”, do que as medidas de coação pedidas pelo Ministério Público – medidas de coação de proibição de permanência na residência do casal e proibição de contactar com a ofendida, diga-se a vítima (caso não seja já claro quem é a vítima nesta situação.).

Continuamos a elencar os factos que o tribunal considerou que “retiram a gravidade legal” aos crimes em causa.

O quarto e quinto factos são por um lado o “nível cultural dos intervenientes” (qual é a especificidade cultural de um casal de portugueses residentes de Gondomar? O tribunal não procurou explicar, e eu também não sei.), por outro o “sentimento de menoridade (e quiçá de inutilidade, afectando a sua auto-estima)” do arguido, induzido, como entende o tribunal, pela já mencionada ausência de relacionamento sexual.

Mas não se fica por aqui o Tribunal (claro que não), que refere ainda, como fator que retira a gravidade aos factos, a vítima não querer o prosseguimento do processo. Podia ser um argumento válido, não fosse a própria natureza do crime de violência doméstica ter sido alterada precisamente para salvaguardar o interesse de vítimas deste tipo de crime íntimo, altamente violento, e contínuo (ao longo de mais de 50 anos).

É este, portanto, o panorama com que lidamos. Se o título é sensacionalista? Nem pouco mais ou menos, e peca apenas por não referir as outras questões que foram consideradas para justificar estas agressões.

Este triste acórdão é apenas mais um, no largo conjunto de decisões que contêm afirmações tão ou mais descabidas. Trata-se de um comportamento coerente com a mentalidade retrógrada que ainda enferma o sistema jurídico português, em que o arguido (em bom português) é levado ao colo, com diversos apelos aos seus sentimentos e vulnerabilidade e a vítima é uma figura processual que, por muito que se legisle com vista à sua proteção, é inversa e proporcionalmente desconsiderada pelos tribunais portugueses.

Mais uma vez temos um tribunal (desta vez superior) que procura a qualquer custo (mesmo que o custo seja a preterição da própria lei) justificar o comportamento do agressor em prejuízo da vítima. Este tribunal parece apoiar-se, ainda que subentendidamente, no facto de neste caso (como em praticamente todos os casos de violência doméstica…) o agressor e a vítima serem casados (há 50 anos).

Possivelmente o que foi pretendido com a suscitação do tal “nível cultural” prende-se com tempos passados, em que violações dentro de um laço matrimonial não consubstanciavam um crime, e em que agressões físicas e psicológicas eram pedra de toque do dia-a-dia de muitos casais portugueses, mas estou apenas a supor que a lógica era esta (no melhor cenário.). Este melhor cenário, porém, pinta uma cinzenta realidade: a de que temos tribunais que insistem em julgar com base em realidades largamente ultrapassadas.

A lei, bem como os princípios e valores preponderantes e subjacentes, evolui com o passar do tempo e a sua interpretação não pode ficar para trás, ainda que certos juízes nisso insistam. É impensável desproteger de tal modo uma vítima, idosa, de especial vulnerabilidade, especialmente com esta narrativa justificativa e desculpatória do comportamento do agressor. E porquê? Porque antigamente também não seria protegida? Porque é vítima há 50 anos e devia estar habituada? Porque não “dá” sexo ao agressor?

Enfim… Temos um tribunal a fazer como aquelas pessoas que dizem “vou só aqui fazer de advogado do diabo” antes de darem opiniões controversas que não assumem a título próprio, e neste caso parece que a opinião é que ser idoso, beber álcool, e alegar falta de sexo retira a gravidade legal da violação doméstica.