Anda no ar um clima de fim de festa socialista, resultante do desastre da TAP, do destapar do lupanar em que se transformaram as camadas superiores do Estado, da patente mediocridade de alguns ministros e do irremediável cinzentismo de outros, e, finalmente, das suspeitas sobre as vigarices eleitorais nas freguesias lisboetas.
Acreditam alguns que este fim de ciclo não tem nenhuma relação com o fim da Geringonça, e surpreendem-se os analistas com a constatação de que o governo com maioria absoluta parece menos sólido do que quando se apoiava nas duas pernas dementes do tripé. É esquecer que dificilmente os escândalos chegariam à opinião pública no tempo em que havia os filtros do PCP e do Bloco, cuja influência nas redacções, nas magistraturas, nas polícias e nos costumes excede a medida da eleitoral. Abafar deslizes no caminho glorioso do triunfo das classes laboriosas é um activo leninista do PCP; e o Bloco nunca veria com bons olhos a oferta de trunfos à direita com a denúncia do desbragamento das gestões públicas.
Costa está cansado, diz-se, e teima em manter-se rodeado de nulidades que deveria substituir; e Marcelo corre atrás da margem de popularidade que perdeu, esgotando-se em “recados” irrelevantes que os jornalistas glosam com gosto.
Estão reunidas as condições para calçar uns patins à desgovernança socialista; e Marcelo aguarda apenas que as sondagens mostrem uma clara vitória do PSD para se lembrar que é o garante do regular funcionamento das instituições, mandando pelo ralo esta água turva do situacionismo que, aliás, ele sempre alimentou com devoção.
Cavaco, que administra os seus silêncios como Sampaio, mas difere deste por a sua vulgata não ser a socialista da nossa desgraça, fez um discurso que doeu à esquerda por elencar quase todos os falhanços que no conjunto compõem o completo desvalor do governo que temos, o que, sendo muito, é ainda menos do que o resvalar do país para os últimos lugares do desenvolvimento – detalhe o mais significativo de todos por medir resultados e não tretas sortidas ou estados de alma, e que Cavaco, cruelmente, frisou.
Seja. Resta perceber por que razão, sendo as coisas assim, a Oposição tem dificuldades em descolar. Comecemos por desmontar algumas ideias:
Costa não está cansado. Não tem idade para o estar nem a gestão das lutas internas do PS, o controle das mensagens que a comunicação social passa à opinião pública, o cuidado com a sua freguesia eleitoral e com as instâncias europeias e seus ditames são mais trabalhosos do que alguma vez foram. Será talvez verdade que tem investido tempo na gestão prospectiva de uma carreira lá fora, onde as suas qualidades de mestre de cerimónias e fazedor de consensos dissolventes poderiam ser postas a render, como sucedeu com os camaradas Guterres e Vitorino, ou o não-camarada Durão. Mas era o que faltava se, numa máquina tão grande e oleada há tanto tempo, as ausências temporárias do capo, por si, provocassem o desmoronar.
O caso TAP veio mostrar que uma das bandeiras eleitorais costianas, a renacionalização, teve um preço mas não foi o atraso difuso do país, que é sempre possível rebater com uma carrada de argumentos, e sim 320 Euros a cada português, em média. Mostrou isso e o prodigioso amadorismo e amiguismo da gestão política de uma empresa pública. Mas, ao mesmo tempo, obscureceu o facto de o sector empresarial do Estado contar com quase 150 empresas e ser necessária uma grande dose de ingenuidade para imaginar que a TAP é a excepção, e não a regra. As empresas públicas são parqueamentos de rapazes do poder e sê-lo-ão sempre: a ideia de que tirando uns e pondo outros altera o carácter da coisa esbarra no facto simples de que aquelas empresas trabalham, ao contrário das privadas que não estão acolhidas à sombra do Estado, num mercado perfeito: aquele em que, quaisquer que sejam os prejuízos, nem os responsáveis são penalizados por isso, nem elas vão à falência.
A freguesia eleitoral do PS mora sobretudo no funcionalismo público, nos pensionistas e reformados, no funcionalismo de empresas públicas e de muitas que têm o Estado como cliente cativo, além de cidadãos puros e generosos que acreditam que o egoísmo, e portanto a desgraça dos pobres, mora no lado direito do espectro, enquanto a generosidade, e portanto o progresso, mora no outro.
Reformar quer com frequência dizer fechar, eliminar, reconverter, avaliar, medir. E do lado de lá de todos estes verbos estão pessoas. As quais desconfiam que num país eficiente cresceria a desigualdade e isso não pode ser. É como me dizia uma simpática empregada, no tempo antigo das inflações gigantescas, aquando de uma das frequentes revisões salariais: o senhor até pode ter razão nisso que diz para aumentar a uns assim e a outros assado; mas eu preferia que o meu aumento fosse mais pequeno se fossem todos por igual (era meia comunista, coitada, agora deve votar no Bloco).
Costa de tácticas entende, e de banha da cobra também. Por isso, fez paulatinamente crescer o número de funcionários públicos, deixando de se falar de contenção e reformas: qualquer problema se resolve com dez anúncios de milhões, cinco portarias, dois decretos-lei e, nos casos mais graves, um observatório. O argumentário para defender estes pesos mortos no desempenho da economia costuma ser o das comparações com “países mais desenvolvidos”, pelo tradicional e curioso raciocínio de se entender que não temos nada a aprender com os que subiram degraus na hierarquia do produto por cabeça, e tudo com os que se mantêm periclitantemente no topo.
Diz-se por aí que Luís Montenegro tem tanto carisma como uma caixa de sabão, e que isso explica a razão pela qual o PSD não sobe significativamente. E quem isso diz acrescenta, revirando os olhos e com duas fundas rugas de desgosto sulcando a fronte desconsolada: ai, que já não há políticos como antigamente! Tretas: há os fenómenos Chega e IL, que só por si explicam boa parte das dificuldades presentes, e das pretéritas do CDS, cujo regresso às lides seria uma coisa boa. E mesmo que se perceba que, por razões de lógica partidária, talvez faça sentido descartar coligações pré-eleitorais, alijar o PS, de preferência por espaço de pelo menos dez anos, requererá alguma espécie de entendimento entre todas as capelas da direita.
Não que a tarefa seja fácil. O mecanismo pelo qual a dívida pública pôde descer face ao produto (o maná do turismo primeiro, os orçamentos aprovados de uma maneira e executados de outra, a quebra do investimento, os aumentos sorrateiros de impostos, a chuva dos subsídios bruxelenses e mais recentemente a inflação, além de um longo etc.) criou as impropriamente chamadas “folgas” (não há folgas quando a dívida pública não cessa de crescer nominalmente) cujo espatifar não ofende as instâncias europeias. E é com elas que Costa conta para, logo que se vejam no horizonte eleições, dar um bodo a funcionários e reformados, ao mesmo tempo que a máquina de propaganda cuidadosamente oleada atroará os ares com uma longa lista de sucessos.
Acrescento: A tarefa é tão difícil que é tempo de pôr uma surdina na guerrilha partidária – o inimigo é o PS e o resto da esquerda nem sequer justifica que com ela se perca tempo. O futuro não pode ser adivinhado porque só vai suceder de uma maneira e há muitas de o imaginar; e depois haverá factores novos que podem baralhar tudo e que, por definição, se desconhecem. Mas, tudo o mais igual, a vitória de Costa e do PS é a derrota de Portugal: mais cinco anos e aos cinco países dentro da UE que já nos ultrapassaram nos mandatos de Costa (a Roménia apenas igualou, precisa de mais um ano) somar-se-ão os cinco que ainda faltam. Após o que olharemos com desdém para a Albânia, a Bósnia-Herzegovina ou a Sérvia. Se nenhum destes países aderir à União ou, aderindo, tiver a desdita de ser governado por um émulo do nosso sultão local.
Nota editorial: Os pontos de vista expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não reflectem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.