O discurso de encerramento da Festa do “Avante!” é sempre um momento solene, carregado de significado político. Historicamente, o secretário-geral comunista costuma aproveitar a rentrée do partido para lançar as bases estratégicas e fazer uma leitura da situação política nacional e internacional. Não é uma coisa de somenos, uma comunicação de segunda, um mero discurso, um documento publicado no site ou um texto no jornal “Avante!”. Até pela atenção mediática que a Festa recebe, é a intervenção do secretário-geral do PCP.
Vem isto a propósito da intervenção de Paulo Raimundo no último domingo. Foram sensivelmente 60 minutos de discurso. Mais de 3.600 palavras e quase 18 mil caracteres. Nele, o líder comunista faz uma longa preleção sobre o que se vai vivendo na Faixa de Gaza. Fala em “genocídio” e “massacre em curso”, na “máquina de guerra de Israel”, alimentada pelo “apoio dos Estados Unidos da América e da União Europeia”, com a cumplicidade do Governo português, “vergado” aos interesses de Washington e Bruxelas.
Existe também um elogio à China, pelo “importante papel” assumido na “resistência” e nos “processos de mudança que se afirmam e põem em causa a ordem imperialista”. Um “abraço solidário a Cuba e à sua Revolução”, mas também “à Venezuela Bolivariana e ao povo venezuelano, ao povo sarauí e à sua luta de libertação nacional”, descritos como “exemplos, entre muitos outros, de resistência heróica e um factor de esperança e confiança na justa luta”.
Seguem-se novas denúncias sobre o papel dos “Estados Unidos e de outras potências capitalistas”, que “não hesitam em recorrer ao seu braço armado, a NATO, nem ao fascismo para intensificar as provocações, as chantagens, sanções, bloqueios, ingerências, golpes e guerras contra países e povos que não se submetem às suas ordens”.
Existe também uma referência à tragédia do Mar Mediterrâneo. “Aqui não se esquecem os milhares de mortos no Mar Mediterrâneo, abandonados por uma União Europeia que enche a boca de direitos humanos. Uma União Europeia cada vez mais às ordens dos EUA, ao serviço dos interesses económicos e do militarismo, e que abre as portas a concepções e forças reacionárias e fascistas.”
E uma certeza: “Aqui afirmamos e defendemos a paz e damos combate aos que fazem da morte e destruição, garantias de lucro da indústria do armamento. Não nos arrastam para a propaganda da guerra, para o discurso do ódio, para o militarismo. Não desistimos – Paz sim, guerra não.”
Ora a firmeza de Paulo Raimundo sobre Israel e Palestina, os elogios à resistência de Pequim, Caracas e Havana, a palavra de apreço pela luta do povo sarauí, a adjetivação utilizada para descrever os Estados Unidos e a União Europeia (ora “hipócritas”, ora “cúmplices”, ora “vergados”, ora aliados do “fascismo”, que provoca, chantageia, sanciona, bloqueia e golpeia os demais países) contrastam com um absoluto vazio sobre o que se vive na Ucrânia e sobre o papel da Rússia.
Não é exagero. Em 60 minutos de discurso, 3.668 palavras e 17.998 caracteres, Paulo Raimundo não encontrou um minuto para falar sobre uma guerra que está a acontecer na Europa. Não fez uma referência que fosse (fosse qual fosse) a Moscovo e a Kiev. Zero. Uma completa omissão.
Poder-se-ia dizer que o PCP não deu pela guerra. Não é verdade. Ainda em maio deste ano, por entre lamentos da injustiça com que o partido tem sido tratado, o secretário-geral comunista lá reconheceu que a guerra “ganhou uma escalada enormíssima de há dois anos a esta parte, com a entrada das tropas russas em território ucraniano”. É alguma coisinha.
Poder-se-ia dizer que Raimundo entende que o comício final da Festa do “Avante!” não é o melhor local para se falar da guerra na Ucrânia. Mas não. Há um ano, em 2023, o mesmo Paulo Raimundo, na mesma Quinta da Atalaia, dizia, a partir do palco, que era “preciso agir, face aos que, indiferentes à morte e à destruição, apostam no conflito militar em vários pontos do mundo e insistem a todo o custo na continuação de uma guerra que na Ucrânia já leva nove anos, que nunca deveria ter começado e que é urgente parar”.
Portanto, desta vez, Raimundo não mostrou tanta preocupação com a evolução do conflito na Ucrânia. Existirão seguramente muitas explicações para isso. Os comunistas terão percebido que estavam a ser prejudicados pela posição indefensável que têm assumido ao longo do conflito? Estão embaraçados por terem apoiado durante tanto tempo Moscovo? Ou, em alternativa, mantêm a inabalável confiança na versão que Vladimir Putin apresentou ao mundo para justificar a invasão, a de um país cercado a defender-se contra a ameaça fascista?
Raimundo não explicou. Mas não foi por falta de tempo e de oportunidade, seguramente. O que leva a uma conclusão: num discurso que é pensado e preparado ao pormenor, esta omissão foi deliberada. E se foi, foi porque não interessa a Paulo Raimundo falar sobre a Ucrânia neste momento.
Seria só um problema do PCP e da relação do partido com os eleitores. Seria, se Paulo Raimundo não passasse o resto do discurso a separar o país e o mundo entre bons e maus, entre democratas e reacionários, entre patriotas e saudosistas, entre revolucionários e contrarrevolucionários. “Não se pode estar em cima do muro”, exigiu Raimundo. Num discurso carregado de adjetivação, de denúncias, de críticas e de ataques a todos os que (acha o PCP) estão do outro do lado muro, é no mínimo irónico que se tenha esquecido da Ucrânia. Os “valores de Abril” só dão jeito às vezes.
Nota: o Partido Comunista Venezuelano, “partido irmão” dos comunistas portugueses, não ficou muito feliz com o apoio do PCP a Nicolás Maduro. “Vale a pena perguntar (…) se o nosso ‘partido irmão’ está a privilegiar a situação do governo da Venezuela na geopolítica e não vê o que se está a passar com a classe trabalhadora e o povo venezuelano às mãos de um governo burguês”, questionava, no final de julho, Óscar Figuera, secretário-geral do Partido Comunista Venezuelano. Nos 60 minutos de discurso (3.668 palavras e 17.998 caracteres), Paulo Raimundo também não teve oportunidade de falar aprofundadamente sobre o tema. É pena.