Mil passos que déssemos para desburocratizar licenciamentos, reduzir impostos e reformar os Tribunais, estimular a oferta de casas, etc., seriam só mil passos para resolver o problema da habitação em Portugal.

Podíamos e devíamos, com urgência, tornar a nossa economia mais justa e competitiva com impostos mais baixos e menos arbitrários; treinar e organizar a Administração Pública e os Tribunais, que herdámos do «fascismo», para decidir depressa e bem, com métodos e critérios que servissem o nosso tempo. Mil passos sempre seriam mil passos que nos deixariam mais perto da luz ao fundo do túnel. E há todas as razões do mundo para os dar.

Mas o problema da habitação é cúmulo de múltiplos fatores externos e internos e demasiado complexo para ser resolvido com meia dúzia de «medidas», embora possa haver «medidas» que o mitiguem.

É, desde logo, um problema global: há falta de habitação para uma geração inteira, em praticamente todas as cidades do «mundo conhecido».

A tendência começou a surgir no rescaldo das crises do subprime e das dívidas soberanas (2007/2008-?), com as restrições de financiamento bancário ao consumo de imóveis e as restrições urbanísticas à expansão urbana. Resulta hoje em contas muito simples. A evolução dos preços das casas, não apenas o seu valor de mercado, mas também o custo da construção, não foi acompanhada de uma evolução dos salários. Há uma desproporção entre o valor da habitação e o valor dos salários para que a lei da oferta e da procura apenas dá uma explicação superficial. Salta aos olhos que muitas economias ocidentais caminham para não produzir o suficiente para cobrir as necessidades de habitação das suas populações urbanas. Este desajustamento, que só não criou graves disrupções sociais porque há ainda uma sólida maioria da população com habitação garantida, indicia a falência de um sistema de desenvolvimento económico global, que não tem alternativa se não ser substituído.

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É um fenómeno global, mas com nuances locais – como se vê, agora que o dinheiro mais caro arrefeceu drasticamente os preços da habitação em muitas latitudes, mantendo-se o mercado português praticamente incólume. Pelo menos por enquanto.

Aqui no triângulo, fatores determinantes não serão só a restrição da oferta, causada por licenciamentos inaceitavelmente demorados, e a muita procura, causada pela irresponsável e prolongada manutenção de baixas taxas de juro, decidida por estados terceiros, que injetou no mercado um excesso de liquidez que não chegou para insuflar os salários dos mais pobres e das classes médias.

Também não está no facto de haver muitos estrangeiros e «golden visas» a comprar apartamentos na Lapa. Não é só por isso que faltam casas aos portugueses em Odivelas ou em Loures.

O que faz realmente falta para resolver necessidades coletivas, incluindo habitação, é um instrumento de que nenhum país bem governado prescinde: uma estratégia nacional, orientada pelos interesses permanentes históricos e atuais da nação e capaz de antecipar as tendências demográficas, sociais e económicas para agir em tempo. À falta de estratégia, as decisões políticas vão sendo formadas no esteio de pequenas estratégias circunstanciais, que de estratégico têm muito pouco.

Algures no princípio do século, para dinamizar a economia e prevenir especulativas bolhas imobiliárias, decidiu-se, e bem, apostar forte no turismo, com financiamento público e uma razoável dose de liberalização, e, não tão bem, tornar praticamente impossível a expansão urbana, por via de novas regras de zonamento urbanístico.

A aposta no turismo foi/é um sucesso tremendo, o sector está de parabéns e tem a gratidão do país. E tem ainda muito por onde crescer.

O que não ocorreu aos decisores foi que dessa opção nasceria uma disputa feroz entre a ocupação turística e a habitacional por metros quadrados cada vez mais escassos, da qual que a habitação sairia com pesada derrota.

Se temos a agradecer ao turismo o impulso importante nas exportações e a cara lavada das nossas cidades e muitas aldeias, é à ausência de estratégia nacional que devemos uma excessiva dependência de um sector demasiado exposto ao sucesso de outras economias, uma re-industrialização do país por fazer e a falta de uma economia toda de valor acrescentado, cujos salários nos permitissem recomprar aos franceses as nossas casas dos bairros populares.

No caldo de uma ordem mundial em mutação, de ausência de estratégia nacional e de graves deficiências no funcionamento das instituições, Portugal, apesar de tudo, não é dos piores, nem dos melhores, no ranking do preço das casas por rendimento per capita.

A pergunta fundamental que se coloca, no entanto, é a seguinte: tem esta terceira república condições para tomar as opções estratégicas necessárias para que Portugal enfrente com sucesso a nova ordem mundial e a vitalidade para resolver os seus problemas estruturais, ou devemos criar outra?