Sim, é altamente desprestigiante o Parlamento português ter mandado o Tribunal Constitucional e o Supremo Tribunal Administrativo transferirem-se de Lisboa para Coimbra, por motivos de reforço da “visibilidade do valor da independência do poder judicial relativamente ao poder político, através da distanciação geográfica das respetivas sedes”.

(Há outras razões para este “desprestígio” referidas no famoso parecer que o próprio Tribunal Constitucional apresentou sobre a questão. Mas quem souber ler nas entrelinhas concluirá que esta é a razão principal.)

É mais do que desprestigiante; é um insulto ao Tribunal Constitucional, ao Supremo Tribunal Administrativo e aos Portugueses, que ficam assim com motivos para duvidar da independência política dos seus altos tribunais, salvo o Supremo Tribunal de Justiça, que permanece, sabe-se lá porquê, em Lisboa.

Afinal, os senhores deputados querem dizer que a proximidade geográfica do Tribunal Constitucional com os demais órgãos de soberania (ocupados pelos partidos) pode pôr em causa a independência dos seus juízes, escolhidos (pelos partidos) de acordo com protocolos costumeiros (criados pelos partidos)?

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E no caso do Supremo Tribunal Administrativo, há suspeitas de ingerência do poder político que justifiquem este “sinal democrático”? Se há, não é suficientemente grave para que as entidades competentes façam o que lhes compete?

Ou será que os senhores deputados acham os Portugueses tão estúpidos a ponto de não entenderem o que quer dizer “separação de poderes”?

Outro dos motivos expostos pelos deputados do PSD é o da “descentralização” – vaca sagrada deste regime. Por ele se propõe a transferência do Tribunal Constitucional e do Supremo Tribunal Administrativo para Coimbra, devido à “sua centralidade geográfica” – o que denota que o formato em que os deputados imaginam Portugal é semelhante ao de suas cabeças: quadrado.

Sucede que Portugal não é um quadrado nem um retângulo. É um triângulo arquipelágico, cujas faces se desenham entre o Grupo Ocidental dos Açores, as Ilhas Selvagens e a Raia. O centro de Portugal está, e está desde que Portugal tem a sua pouquíssima relevância na história da humanidade, na faixa atlântica do território continental, entre Viana do Castelo e Sagres.

Nesta perspetiva, o lugar da encantadora cidade de Coimbra na escala da “centralidade” é bastante modesto, abaixo de muitas outras localidades, tais como Santiago do Cacém, Torres Vedras, Perafita ou Mindelo, todas mais próximas de portos de águas profundas e aeroportos internacionais.

E é nesta perspetiva que Lisboa é tão central em Portugal, como Madrid o é em Espanha e Brasília no Brasil – países cujas capitais foram definidas mais por razões geoestratégicas do que por circunstâncias históricas.

Não foi, aliás, por acaso que D. Afonso Henriques – que tinha a sua “capital” em Coimbra –, se apressou a conquistar Lisboa, logo em 1147, notável feito geostratégico que assegurou a expansão para Leste e Sul nos reinados seguintes e o controlo cristão das rotas marítimas de cabotagem que ligavam o Mediterrâneo ao Mar do Norte.

Depois disso, não foi por acaso que D. Dinis fundou a Universidade em Lisboa, que foi em Lisboa que estalou o “não” do povo português a Castela, definitivo em Aljubarrota, que de Lisboa saíram as naus para o mundo, que foi abeirando-se de Lisboa que Napoleão começou a cair e mais um enciclopédico etc.

Ao contrário do que um certo populismo provinciano quer fazer crer, Lisboa não é o “centro de Portugal” porque os poderes políticos e administrativos se foram ali instalando e enquistando ao longo dos séculos. É porque Lisboa está real e geograficamente no centro de um Portugal atlântico, marítimo e ultramarino, que os poderes políticos se viram obrigados a procurá-la e torná-la sua. Dominar Lisboa é necessário para dominar Portugal. O facto de Lisboa ser portuguesa foi a garantia da soberania e independência do Portugal triangular e é provavelmente por isso que Coimbra não é hoje castelhana.

Há também a questão “simbólica”, nesta transferência “descentralizadora”. Sim, é verdade, há que reconhecer. Esta iniciativa é o símbolo perfeito de um regime provinciano incapaz de fazer as reformas na Justiça de que o país precisa como de pão para a boca.

O Estado português é sistematicamente condenado pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem a pagar indemnizações às pessoas por não assegurar decisões judiciais em tempo razoável. As administrações públicas – sobretudo as câmaras municipais – fazem o que querem dos cidadãos, porque não têm a temer que estes as ponham em tribunal.

Os tribunais administrativos de primeira instância trabalham em condições técnicas e logísticas miseráveis, demoram séculos a decidir e decidem mal, em grande parte das vezes, por não estarem munidos da necessária especialização1.

Face a este cenário, os nossos deputados entendem que o “sinal incontornável da aproximação das instituições aos cidadãos que devem dar aos portugueses é mudar a sede do Supremo Tribunal Administrativo para… Coimbra! – logo o Tribunal onde é mais raro alguém precisar de ir.

Nesta lógica populista e provinciana de “descentralização”, que serve para subsidiar a ocupação de localidades demograficamente inviáveis, mas que nada serve o país no seu todo, difícil de compreender é porque é que não se foi mais longe2.

Podia ter-se aproveitado o ensejo para transferir a Assembleia da República para Rio de Onor, protótipo da democracia hispânica, e a Presidência da República e o Conselho de Ministros para o Vale de Santarém. O Tribunal Constitucional ficava mais bem centrado em Odemira, cuja tradição no estudo da jurisprudência em nada fica a dever a Karlsruhe (onde está o tribunal constitucional federal alemão). Isso sim, seriam iniciativas de valor, se os senhores deputados quisessem uma “descentralização” a sério e dar o exemplo.

Era só vantagens. Cada órgão de soberania ficava instalado em localidades vocacionadas para as respetivas funções, dava-se um “sinal incontornável” de que em Portugal há uma democracia madura, com todos os poderes muito bem separados entre si, haveria investimento público a dinamizar a economia do “interior”. Para os lisboetas era o melhor de dois mundos. Não perderiam a centralidade que a geografia deu à sua cidade e finalmente veriam pelas costas os responsáveis pela ruína do seu futuro.

A propósito, quando é que o INFARMED vai finalmente para o Porto?

Notas:

(1) O autor destes parágrafos, estreou-se em lides forenses, já vai para 10 anos, no Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé, que funcionava e ainda funciona num edifício residencial feio e de péssima construção, cuja porta de acesso ladeava, então, um snack-bar imundo. A sala de audiências, com vista para a esplanada luminosa do Palácio de Justiça de Loulé, tinha antes albergado uma associação desportiva qualquer, que ali tinha deixado alguns dos seus pertences. Atrás da Juiz, que dignamente dizia o Direito em nome do Povo, havia um expositor que patenteava taças de campeonatos locais de futsal e galhardetes de agremiações anónimas. Descrições dos nossos tribunais administrativos de 1.ª instância, deste género, dariam um grosso volume de anedotas.

(2) Sem prejuízo da descentralização, em sentido próprio, que é necessária, mas cuja análise ficará para outra oportunidade.