Uma mulher pobre que rouba um pão para alimentar os filhos famintos não deve ser presa. Logo, temos de despenalizar o furto. A despenalização do furto é o meio mais seguro para evitar que mulheres pobres alimentem filhos famintos tendo que remexer contentores do lixo ou sujeitando-se a esmolas. Fosse permitido o furto de bens alimentares de escassa relevância económica, não haveria fome no mundo.
Não é que eu, pessoalmente, seja a favor do furto – nunca o fiz, não farei, e acho que nunca faria se, em circunstâncias extremas, tivesse de optar entre matar a fome dos meus filhos e gamar uma sandes de presunto.
Mas estou mesmo convencido de que ninguém merece ser preso por roubar comida em caso de necessidade e de que a única razão para que o furto de bens alimentares de escasso valor económico não seja despenalizado, e subsequentemente legalizado, é por interesse das grandes padarias. São “eles” que não querem e não deixam, para se protegerem. Até porque não é por o furto ser despenalizado que as pessoas que não concordem com isso sejam obrigadas a furtar. A verdade é que é injusto obrigar alguém a passar fome. Afinal, cada um sabe o que pode e deve fazer em relação aos bens alheios”.
(João Ariz, Ensaios, inédito)

A sensatez de experiência feita recomenda que os tipos de crime sejam desenhados em termos que protejam, em geral e abstrato, os bens e valores que são importantes para a comunidade.

Estabelecer que um ato é crime, ou não, em função dos casos excecionais ou extremos dá o mau resultado de abolir ou desvalorizar os bens e valores que se pretende proteger com a punição dos infratores. Os casos excecionais têm de ser tratados como exceções à regra; não podem ser a bitola da regra.

No progresso da humanidade, houve ainda outro avanço importante. Foi a introdução do elemento culpa pessoalenquanto requisito para a punição. Para se ser punido, não basta praticar o ato proibido; é preciso que o comportamento criminoso seja moralmente censurável, de acordo com as circunstâncias pessoais do agente.

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Salvo erro judiciário, entre regras, exceções e culpas, o sistema funciona bem assim.

É crime matar, roubar, defraudar o fisco e corromper políticos porque a vida humana, o património, a saúde da fazenda pública e a boa gestão dos negócios públicos são bens ou valores reconhecidos por toda a gente.

E é porque vida humana intrauterina é um bem protegido pela comunidade que o aborto é crime. Em Portugal e em praticamente todo o mundo civilizado. De facto, ao contrário da convicção geral, em Portugal, “a mulher grávida que der consentimento ao aborto praticado por terceiro, ou que, por facto próprio ou alheio, se fizer abortar, é punida com pena de prisão até 3 anos” (1).

O aborto é crime, salvo em casos excecionais que justificam a ausência de punição (perigo para a saúde da mãe, inviabilidade do embrião/feto, ou quando a gravidez resulte de violação). E mesmo assim com limitações.

Além dessas circunstâncias excecionais, por razões que um embrião extirpado do ventre materno nunca saberá, o crime deixa de o ser se a mãe por ele optar livremente até às 10 semanas de gravidez.

Não era assim, no Mississípi, onde, até anteontem, o aborto de fetos “pré-viáveis” (os  que não sobreviveriam fora do útero) era um “direito fundamental”, como em todos os estados federados dos EUA.

Tudo começou em 2018, quando o parlamento estadual quis limitar o direito ao aborto às 15 semanas de gravidez. O legislador mississipiano, consciente de que, a partir das 15 semanas, a eliminação do feto é feita por procedimentos de dilatação e evacuação, mediante instrumentos cirúrgicos que esmagam e desfazem o nascituro, concluiu que “a prática intencional desses atos por razões não terapêuticas e meramente discricionárias é uma barbaridade perigosa para a mãe e indigna da profissão médica” (2).

O problema daquela proposta é que esbarrava no tal direito fundamental ao aborto, forjado pelo Supremo Tribunal dos Estados Unidos (SCOTUS) nos famosos casos Roe v. Wade e Planned Parenthood v. Casey, a partir de uma complexa (des)construção do direito à privacidade.

Só o SCOTUS podia decidir revogar aquele direito fundamental ao aborto. Foi o que fez, na decisão que agora faz correr rios de tinta.

No fundo, o SCOTUS decidiu como decidiu porque não descobriu razões para manter o entendimento de que a liberdade de tomar decisões sobre a vida íntima incluía um direito a abortar. Indo mais longe, de acordo com o próprio tribunal, esse entendimento amplo do que significa a liberdade levaria necessariamente a considerar também como direitos fundamentais, por exemplo, o direito de usar drogas ilícitas ou de alguém se prostituir.

Mas o sumo da decisão está aqui: “O aborto faz presente uma profunda questão moral. A Constituição não proíbe os cidadãos de cada Estado de regularem ou proibirem o aborto. [As decisões do SCOTUS nos casos] Roe e Casey apossaram-se dessa autoridade. O SCOTUS agora revoga essas decisões e devolve essa autoridade ao povo e aos seus representantes eleitos”.

Aquilo que parecia uma decisão razoavelmente democrática e concretizadora do princípio da separação de poderes foi lamentada por metade do Ocidente como um retrocesso civilizacional. De repente, vários chefes de Estado e de Governo, dos mais respeitáveis, acharam aceitável opinar sobre a interpretação que um Supremo Tribunal, legitimamente eleito, de um país terceiro faz sobre a Constituição do seu próprio país. Os grandes grupos multinacionais, sincronizados como relógios, apressaram-se a patrocinar publicamente a matança discricionária de criaturas inocentes. É impressionante.

Mas o que mais impressiona são as torrentes de ódio que circulam nas redes. É o mesmo ódio, em estado bruto, que matou judeus em campos de concentração e mata cristãos, ainda hoje, por esse mundo fora. Que mata nos roubos, nas pederastias e nas guerras. É sempre o mesmo problema do mal inquietando a humanidade.

29 de junho de 2022

  1. Artigo 140.º, n.º 3, do Código Penal.
  2. Tradução livre da decisão publicada aqui.