João Miguel Tavares afirmou recentemente que se “os brancos tivessem ficado calados quanto aos direitos dos negros talvez hoje em dia ainda houvesse escravatura”. Essa afirmação, mais do que razoável, provocou uma boa dose de indignação nas redes sociais. Então — perguntaram alguns —, depois de tudo o que haviam passado, os negros ainda teriam de agradecer aos brancos o fim da escravatura? Houve quem insultasse J. M. Tavares e quem lhe lembrasse as várias rebeliões de escravos africanos, invocando, em particular, o caso do Haiti. Na visão dessas pessoas os negros revoltosos da antiga colónia francesa de Saint-Domingue eram anti-escravistas, tinham posto fim à escravidão, haviam fundado um país independente, o Haiti, e tinham sido capazes de o fazer por si sós, sem precisarem dos brancos e, mais do que isso, contra os brancos.

Sucede que essa visão é falsa, ou melhor, parcialmente falsa, como convém às mentiras mais arreigadas e teimosas. Vejamos as revoltas escravas mais de perto a começar justamente pela do Haiti. Ao contrário do que Daniel Oliveira escreveu (outra ideia politicamente correcta mas historicamente errada) não foram os escravos revoltosos que introduziram ou reproduziram a Revolução Francesa no que viria a ser o Haiti. A revolução já estava em curso na colónia há cerca de dois anos, opondo a gente livre entre si — brancos contra outros brancos e mestiços, realistas contra jacobinos — quando, aproveitando a agitação reinante, uma fracção dos escravos negros se revoltou (Agosto de 1791). Inicialmente, e se bem que de grande dimensão e muitíssimo violenta, tratava-se de uma revolta como as outras. O objectivo de alguns revoltosos era o de matar todos os brancos e tomar conta da colónia. Outros, queriam apenas melhorar as condições da sua escravidão, reivindicando a proibição do chicote e a concessão de três dias livres por semana.

Nada disso era inovador. As revoltas anteriores tinham obedecido mais ou menos a esse modelo e em país nenhum do mundo e em época alguma haviam conduzido ao fim da escravidão. Esta minha afirmação é válida para a Antiguidade, para as Idades Média e Moderna, e para os escravos de todas as cores e origens. Nas Américas, e tanto quanto se sabe, a meta dos escravos revoltosos ou fujões (como se dizia no Brasil) não era pôr fim à escravidão, mas apenas obter a liberdade para si mesmos e para os seus. Uma vez essa liberdade conseguida, era comum fazerem eles próprios novos escravos, para explorarem o seu corpo ou o seu trabalho (como sucedeu, por exemplo, no grande quilombo de Palmares), ou para os venderem aos brancos (como foi feito pelos revoltosos na ilha dinamarquesa de São João, em 1773). Ao contrário do que muita gente julga, os escravos rebeldes não eram necessária e geralmente anti-escravistas, e também o não foram nos primeiros tempos de revolta em Saint-Domingue. Aliás, após um sucesso inicial, essa revolta estava em vias de ser esmagada ou circunscrita e, tendo-o percebido, Biassou, Jean-François e os demais líderes — que se apresentavam como defensores do rei e da Igreja contra os jacobinos — propunham que em troca de uma amnistia geral e de várias concessões a eles próprios e aos que lhes eram próximos, nomeadamente a liberdade e a possibilidade de emigrar, o grosso dos escravos revoltosos pusesse fim à rebelião e voltasse às plantações e ao estado de escravidão. Sabendo que Paris decidira enviar para a colónia um exército de seis mil homens os brancos recusaram tais propostas.

Com o exército chegado de França vinham comissários — um dos quais, Sonthonax, era um assumido abolicionista — dotados de plenos poderes para resolver a crise local. Uma pequena parte do exército recém-chegado foi usada para vencer os rebeldes e recuperar muito do território perdido. Em Janeiro de 1793 milhares de escravos revoltosos renderam-se. Os que o não fizeram permaneceram refugiados nas montanhas e provavelmente aí ficariam se, no mês seguinte, após a execução de Luís XVI, a França não tivesse entrado em guerra com a Grã-Bretanha e a Espanha, que, tendo possessões na fronteira ou na proximidade da colónia de Saint-Domingue, viriam a invadi-la.

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Sem meios militares para fazer face a tantas ameaças, pois grande parte do exército enviado pela metrópole sublevara-se e passara para o partido realista, agravando o estado de guerra civil, impulsionado também pelas suas ideias abolicionistas, o comissário Sonthonax proclamou, em Junho de 1793,  que os escravos dispostos a lutarem pela França republicana contra os inimigos internos e externos ganhariam a liberdade, não apenas para si mas também para as suas legítimas mulheres e filhos. A proclamação aplicava-se tanto aos revoltosos como aos escravos que haviam permanecido fiéis aos senhores, e que eram a maioria. No final de Agosto Sonthonax e o seu colega comissário Polverel foram ainda mais longe e declararam a emancipação geral na colónia. Em Fevereiro de 1794 Paris ratificou essa medida emancipacionista e ampliou-a, aprovando a abolição da escravidão não apenas em Saint-Domingue mas em todas as colónias francesas.

Em Maio, após terem tomado conhecimento dessa lei abolicionista, os escravos insubmissos que haviam colocado o território que ainda dominavam sob protecção de Madrid, passando a integrar o exército espanhol, dividiram-se. Jean-François, Biassou e outros líderes mantiveram-se ligados à Espanha. É importante dizer que esses líderes defendiam a continuação da escravidão e vendiam escravos, sobretudo mulheres e crianças, aos espanhóis. Mas os rebeldes que seguiam Toussaint L’Ouverture, um homem que estava a par dos avanços abolicionistas na Europa, corresponderam ao apelo de Sonthonax e passaram para os franceses. De meados de 1794 a 1798, Toussaint — agora general do exército francês — travou e acabou por vencer uma dura guerra contra os invasores espanhóis e ingleses, e contra os realistas e os que ainda mantinham a escravidão nas províncias que controlavam, ficando senhor absoluto da colónia. Foi nessa qualidade que promulgou a Constituição de 1801, que fazia dele governador perpétuo e reiterava a abolição da escravidão. Em 1802, Napoleão tentou recuperar o controle sobre as colónias e restaurar a escravatura, que foi efectivamente reintroduzida nos territórios coloniais franceses excepto em Saint-Domingue pois a população negra e mestiça, comandada por Dessalines e outros antigos lugares-tenentes de Toussaint, resistiu e venceu. A 1 de Janeiro de 1804 Dessalines separou-se definitivamente da França e fundou o estado independente do Haiti. No ano seguinte, foi coroado imperador e mandou massacrar todos os brancos que ainda restavam na ex-colónia.

Pela primeira e única vez na história uma revolta escrava desembocara na proibição da escravidão. De qualquer modo não deve perder-se de vista que todas as abolições, anteriores e posteriores a 1804, foram consequência directa do movimento abolicionista que se desenvolvera no Ocidente e foram decretadas pelos governos e parlamentos ocidentais. Mesmo no caso excepcional do Haiti foi um abolicionista branco, o comissário Sonthonax, que aboliu localmente a escravidão, medida posteriormente confirmada e alargada pela Convenção, em Paris. Só depois disso uma parte dos escravos rebeldes — aquela que era comandada por Toussaint — lutou clara e assumidamente pelo fim da escravidão, acabando por extingui-la na colónia.

Ou seja, há que concluir, em primeiro lugar, que a revolução no Haiti não foi aquilo que muitas vezes se apregoa; e, em segundo lugar, que João Miguel Tavares tem toda a razão. Sem que os abolicionistas brancos tivessem tomado a defesa dos negros a escravatura teria provavelmente continuado a existir. Essa convicção não é apenas de João Miguel Tavares e minha. É, também, de muitos dos mais competentes e prestigiados historiadores da escravatura. Quem, ao contrário deles, quiser ver o passado em tons românticos e politicamente correctos pode continuar a acreditar que os verdadeiros abolicionistas terão sido os escravos revoltosos. Mas a essa crença não se chama História, chama-se ideologia. Infelizmente, a ideologia parece estar a ganhar, mesmo entre os académicos. Quando estava a acabar de escrever este artigo li, no Público, um texto de Francisco Bethencourt onde se afirma que “foram as revoltas de escravos dos séculos XVIII e XIX que suscitaram o problema político da escravatura e do racismo”. Trata-se da mais recente ilustração da teoria que desmontei acima e, no que toca à escravatura, é uma afirmação sem suporte factual. De facto, poderíamos perguntar: que revoltas escravas suscitaram “o problema político da escravatura” em, por exemplo, Portugal? Ou na Suécia? Nenhuma. O que suscitou o “problema político da escravatura” foi o abolicionismo, isto é, a convicção, entre as classes ilustradas do Ocidente, que o tráfico de escravos e a escravidão eram não só injustos, cruéis, pecaminosos e contrários ao verdadeiro destino do Homem, mas também contraproducentes do ponto de vista económico. Foi só na esteira do desenvolvimento do abolicionismo, a partir das décadas de 1770-80, que algumas revoltas escravas, como as que ocorreram nas Caraíbas francesas ou nas colónias inglesas de Barbados, Demerara e Jamaica, passaram a ter como objectivo expresso o desejo de acabar com a escravidão. A ordem dos factores é essa, e não a inversa. Mesmo em França “o problema político da escravatura” foi suscitado por Montesquieu, Raynal, Brissot, Condorcet e muitos outros, antes ou muito antes de ter eclodido a grande revolta escrava que levaria, depois, à formação do Haiti.

Sem suporte factual a afirmação de Francisco Bethencourt também coxeia no que à lógica diz respeito. Efectivamente, por que é que as revoltas escravas dos séculos XVIII e XIX teriam, alegadamente, suscitado “o problema político da escravatura” e não as revoltas dos séculos XVI e XVII? Ou as grandes revoltas dos séculos II e I a.C., como, por exemplo, a revolta de Espártaco que pôs a Itália inteira a ferro e fogo? Não tem lógica, pois não? De facto, o que suscitou “o problema político da escravatura” no período que começa no último terço do século XVIII e se estende pelo século seguinte, foi algo que apenas surgiu nessa altura. Esse algo, essa novidade, não foram as revoltas escravas, que sempre tinham ocorrido nas sociedades escravistas (e como toda a gente perceberá não se pode explicar uma novidade por uma constante), mas sim a ideologia abolicionista que se foi impondo no mundo ocidental. Como Tocqueville disse, na linguagem algo teatral e dramática do seu tempo, “o fim da escravatura não foi conseguido pelos punhais de Espártacos negros mas pela ilustrada vontade dos senhores”.

Historiador e romancista