Todas as democracias, mesmo as mais frágeis e que diariamente subvertem as suas regras basilares, justificam a sua existência se forem aptas a patrocinar a alternância pacífica e sem violência. Cinco décadas após a sua independência, três décadas após os acordos de Bicesse e duas décadas volvidas sobre o fim da guerra civil, no passado dia 24 de Agosto tiveram lugar em Angola, eleições gerais. Qualquer pessoa que conheça e acompanhe minimamente o que se passa em Angola sabe que a vontade massiva da grande maioria dos angolanos – massas populares, classe média e boa parte das elites – deseja profundamente que se opere uma alternância sem violência.

À semelhança do que se viu em eleições anteriores, não deixou de haver suspeições sobre a legalidade das mesmas, não obstante existirem pessoas, países e instituições que se prestaram ao papel cómodo de avalizar de raspão que tudo terá decorrido com “liberdade, justiça e transparência”. Sendo português, nas últimas semanas não pude deixar de sentir vergonha alheia ao assistir ao que por cá se omitiu, fez, disse e escreveu sobre o processo eleitoral angolano. Boa parte do sistema político português (com honrosas exceções), sempre tão preocupado com a defesa da democracia nos locais mais excêntricos e desligados de Portugal, tentou até onde pôde ignorar o que se foi passando em Angola, esperando assim passar entre os pingos da chuva. Outros, mais comprometidos, enquanto davam a sua chancela para legitimar um processo visivelmente viciado no qual foram capazes de perscrutar virtudes, foram ressalvando que qualquer tentativa de questionar o que é óbvio e salta à vista do maior dos ceguinhos se traduz num triste ato de “neocolonialismo”. Sim, porque, como ouvimos amiúde, exigir mais a países que “só” irão na quarta eleição – como foi possível assistir em horário nobre na SIC Notícias, ou ler em alguns comentários infelizes de pessoas que estimo – é uma ingerência do exterior em assuntos de outros povos que devem poder acomodar-se lentamente à democracia, ou até um exercício – pasme-se – de “sobranceria”. Pelo caminho, vimos órgãos de comunicação social como o Público ou o Correio de Manhã aceitarem divulgar encartes comerciais de promoção a Angola, seguramente pagos a um preço que a muitos nos faz corar, e que não se traduzem em qualquer expressão de pluralismo. A própria RTP, canal público pago por todos os portugueses, ofereceu a João Lourenço espaço nobre no canal 1 (ainda assim, útil para que todo o país assistisse aos tiques autoritários do presidente de Angola), relegando a oposição para uma entrevista na RTP África (difundida na RTP3, em horário tardio).

A pior chantagem, porém, que os defensores de um dos regimes mais decadentes que estão hoje em funções nos apresentam é que ser mais exigente em relação ao poder estabelecido em Angola responsabiliza quem o faz pela “violência” que daí resulte. Em Angola, e de acordo com o Hunger Map, mais de 4 milhões de pessoas vivem com alimentos insuficientes e 38% das crianças menores de cinco anos sofrem de desnutrição crónica. Já a taxa de desemprego cifra-se, segundo números oficiais, em mais de 30%, com uns preocupantes 57% entre a população jovem. Ora, para algumas pessoas com elevadas responsabilidades em Portugal, questionar, pedir escrutínio e um melhor funcionamento da democracia neste contexto, implica empurrar Angola para as memórias trágicas de 1992 e da guerra civil que se seguiu – sabido, como se sabe, que à data só o Estado Angolano tem capacidade de usar do uso da força. Força que falta aos que diariamente acordam de manhã sem saber se vão comer ou, como vimos numa reportagem da CNN, “olham para as paredes” e sonham comida enquanto esperam pelo dia de amanhã.

As eleições angolanas operaram na habitual ilegalidade que se tornou um mau hábito desde que há democracia em Angola. Por esta vez, porém, o MPLA teve verdadeira oposição e partidos que não aceitaram fazer parte de uma farsa que uma boa parte do mundo finge não ver. Liderada por um político experiente e carismático – Adalberto da Costa Júnior –, a oposição em Angola tem vindo a fazer um excelente trabalho de desmontagem sistemática das diversas ilegalidades que, sucessivamente, o regime foi protagonizando. Em Portugal, a par da letargia de um certo status quo ultrapassado, vários foram também – e importa assinalar – os órgãos de comunicação social e muitos jornalistas que, corajosamente, deram mediatização e ajudaram a que houvesse capacidade para que, passadas quase duas semanas sobre as eleições, poucos tenham coragem de, abertamente, defender a legalidade de uma vitória do MPLA.

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A fraude em Angola foi, sobretudo, qualitativa. Durante anos o partido do regime usou os recursos públicos em seu benefício, ao ponto de o MPLA se confundir com o próprio Estado: o grau de manipulação não se limita, apenas, ao saque dos lugares na administração pública, ao nepotismo ou ao peculato, a coisa é de tal ordem que em certas províncias do país até as ajudas alimentares e o pouco assistencialismo que é distribuído é entregue por pessoas que envergam camisolas com a bandeira do MPLA. Não há liberdade de imprensa, nem cobertura das ações da oposição. O MPLA e o governo liderados por João Lourenço utilizaram o sistema político e judicial para limitarem a ação da oposição, alterando as leis eleitorais, impugnando dois congressos da UNITA, ou esvaziando a possibilidade de se realizarem sondagens independentes. O sistema eleitoral todo ele foi condicionado, com ausência de publicação de listas de eleitores de onde constavam milhões de mortos. Muitas pessoas foram colocadas para votação em assembleias de voto muito afastadas das suas casas, algo que, num país como Angola, em muito dificultou o exercício do voto. Manifestantes foram presos e torturados, como Laurinda Gouveia, que foi detida juntamente com o seu bebé de 6 meses, quando se dirigia a casa. O clima de terror, esse, permanece e não é apenas dirigido a ativistas políticos: Hamilton Cruz, rosto do “Jornal da Meia-Noite” na TPA, decidiu demitir-se no dia a seguir às eleições por não concordar com a forma de trabalhar do canal, vivendo com medo de represálias. Há observadores internacionais que, tendo questionado a validade das eleições nas reuniões mantidas com os seus pares, relataram em pânico terem sofrido no local ameaças à sua integridade física e das suas famílias.

Um partido que se diz vencedor das eleições e hegemónico junto do povo e da população, em plena pandemia, gastou e reforçou mais o orçamento de segurança, defesa, e polícia, do que o de educação e saúde.

Se no dia 24 de Agosto de 2022 as eleições já eram qualitativamente um engano, pela forma como tudo operou até aí, nos dias seguintes ficou evidente que o MPLA precisou de acionar “mecanismos de manipulação quantitativa” para fabricar um resultado que lhe permita continuar a exercer o Poder. À data do fecho das urnas, pelas 17 horas de quarta-feira, tudo estava encaminhado para que só na sexta-feira seguinte começassem a ser apresentados os primeiros resultados de índole norte-coreana – 62% para o MPLA, contra cerca de 30% para a UNITA – como meses antes assessores da presidência asseveravam como certos (acompanhados sempre de um piscar de olho) aos que, nos hotéis de Luanda, começavam a verbalizar que o fim estava próximo.

O problema é que um regime em fim de vida nem sequer na fraude conseguiu ser competente, e no próprio dia, logo após o fecho das urnas, a vigilância popular do voto e as redes sociais encarregaram-se de começar a exibir que a vontade dos eleitores, por esta vez, está massivamente com a mudança. Ora, para travar a construção de uma convicção popular de que a UNITA e os seus aliados iriam ser os vencedores e para lançar poeira sobre alguma comunidade internacional – a que ainda está disponível para ser enganada –, a Comissão Nacional Eleitoral angolana, localmente conhecida por “CNE”, começou de imediato a lançar resultados provisórios sem adesão à própria realidade. Ora, neste contexto, não foi possível ao MPLA esconder a vitória massiva da UNITA em Luanda, que, segundo o apuramento feito pelo principal partido da oposição, ascenderá a valores superiores a 70%. Mesmo assumindo os números divulgados pela CNE, fruto de um processo qualitativa e quantitativamente distorcido e fraudulento, a UNITA reclama ter saído vencedora, com 49,5% dos votos, contra 48,2% para o MPLA. Tudo isto dando de barato as inúmeras irregularidades identificadas e que uma votação tão expressiva em Luanda a favor da UNITA – que reflete uma enorme vontade de mudança – não foi acompanhada, por exemplo, de idênticas votações massivas na oposição em províncias adjacentes à capital, ou em Benguela ou Huambo.

Nas próximas semanas, e, como bem escreveu Adalberto da Costa Júnior no Público, em Julho deste ano, vão soprar ventos de mudança. O presidente da UNITA tem vindo a ganhar o respeito geral pela forma serena, firme e assente sempre na defesa da legalidade que pautam a sua conduta. Ele é hoje o maior defensor da frágil democracia angolana e responsável pelo seu grande salto de maturidade que é hoje visível para quem quiser ver. Em Angola a população amadureceu do ponto de vista democrático, fruto da renovação demográfica operada nos últimos anos, e do excelente trabalho de pedagogia política que teve lugar numa sociedade civil que não se demitiu de querer tomar as rédeas do seu futuro. O fantasma da guerra civil só existe na retórica dos defensores estrangeiros do regime, porque há muito que Angola está genuinamente pacificada. Só haverá violência em Angola se o poder político estabelecido – o único que tem armas, e que se armou fortemente em tempos de pandemia, num país condenado à fome e à doença – assim o desejar. Mas mesmo aí, João Lourenço é hoje um presidente abandonado, quase sozinho, fragilizado pela doença, incapaz de governar, e que todos à surdina – mesmo os que são mais próximos e indefetíveis do MPLA – gostariam de ver afastado, por saberem que ele não será capaz de dirigir os destinos de Angola e unir o país. A população, espera-se que de forma pacífica, não irá aceitar que o regime não se regenere, que não tenha novas lideranças, e esperemos que nessa hora não haja quem na polícia ou nas forças armadas esteja disposto a praticar violência. Porque, sejamos claros, faz sentido derramar sangue e continuar a lutar para perpetuar João Lourenço?