“Soy realista, en mis novelas trato siempre de mentir con conocimiento de causa.”
Mario Vargas Llosa

Mario Vargas Llosa (Arequipa, Peru, 1936) é um dos maiores escritores do nosso tempo, com uma obra novelesca diversa e extensa, publicada ao longo de mais de meio século, que lhe valeu em 2010 o Prémio Nobel da Literatura. A diversidade da obra está nos géneros que explora, desde a novela erótica e pícara, como em Elojio de la Madrasta e Pantaleón y las Visitadoras, ou La Tia Julia y el Escribidor, à narrativa histórico-política, como no magnífico exemplo de “romance de ditador” que é  La Fiesta del Chivo; ou à evocação da epopeia de Canudos no Brasil dos finais do século XIX, em La Guerra del Fin del Mundo.

A “Literatura de Ditador”

Tiempos Recios, Tempos Duros, na edição portuguesa, centra-se num episódio da Guerra Fria: a queda do governo de Jacobo Árbenz na Guatemala, em 1954, uma queda ligada ao início da intervenção norte-americana na América Central, no quadro do conflito Ocidente-URSS. A recém-fundada CIA, com algumas tentativas falhadas de virar regimes comunistas, nomeadamente na Albânia, foi o instrumento da operação. Curiosamente, o homem no terreno da Agência começou por ser Howard Hunt, depois celebrizado pelo caso Watergate.

O outro romance histórico de Vargas Llosa próximo deste, La Fiesta del Chivo, entrava perfeitamente na categoria de “Literatura de Ditador”, onde figuravam Yo el Supremo, de Augusto Roa Bastos (sobre o caudilho paraguaio, Dr. Rodriguez de Francia) e El Recurso del Método, do admirável novelista cubano Alejo Carpentier, que traçava um retrato-tipo de ditador esclarecido, possivelmente inspirado no mexicano Porfírio Diaz.

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Antes tinham aparecido outros romances do género, como El Señor Presidente, de Miguel Angel Asturias, recriando o regime de Manuel Estrada Cabrera, que governou a Guatemala no primeiro vinténio do século XX. Asturias foi também Prémio Nobel em 1967. Nesse mesmo ano de 1967, Alejo Carpentier, Julio Cortazar e Miguel Otero Silva juntaram-se para um projecto que denominaram “Os Pais da Pátria” e que pretendia fazer retratos de ditadores. Daqui sairiam alguns dos mais célebres romances do género. Tinha havido percursores no século XIX, como o Facundo, de Domingo Faustino Sarmiento, escritor e político argentino que, a partir do caudilho argentino Juan Facundo Quiroga, pretendia retratar o ditador Juan Manuel de Rosas, que governou entre 1829 e 1853.

Um espanhol, Ramón Valle-Inclán, escrevera em 1926 Tirano Banderas. E um italiano, Alberto Moravia, publicaria em 1941 uma divertida sátira, La Mascherata, que foi vista como um retrato de Mussolini numa república da América Central.

Vargas Llosa já se tinha iniciado no género com Conversación en la Catedral (1969), em que contava o quotidiano do Peru sob a ditadura do general Manuel Odría. E depois da Fiesta del Chivo, regressou o ano passado ao tema com Tiempos Recios.

Vargas Llosa sabe bem que, segundo as regras do género, tal como as definiu Umberto Eco em Seis Passeios pelos Bosques Narrativos, um romance histórico não pode ser contra-histórico, ou seja, não pode contrariar o acontecido, embora possa introduzir novas personagens ou mesmo alterar as causas de alguns factos. Assim, o livro começa com uma apresentação de duas personagens que serão decisivas para o desenvolver da história, e que até hoje estavam na sombra.

Das relações públicas na política

O autor introduz aquelas que são “provavelmente as duas pessoas mais influentes no destino da Guatemala e, de certa forma, de toda a América Central no século XX, Edward L. Bernays e Sam Zemurray, duas personagens que não podiam ser mais diferentes uma da outra, por origem, temperamento e vocação”.

Bernays e Zemurray são pessoas reais, dois imigrantes judeus nos Estados Unidos: sobrinho do Sigmund Freud, Bernays era de família rica e foi um dos pioneiros da publicidade e das relações públicas; Zemurray vinha da Europa Oriental e subira a pulso, até chegar a dirigente da famosa United Fruit Company, a companhia americana que cultivava bananas nas repúblicas das mesmas.

Zemurray tinha trazido a banana para a América do Norte e com isso ficara milionário, mas a sua riqueza e uma vasta rede de relações que se estendia das Caraíbas à Colômbia, passando pelos pequenos países da Centro América, não perturbaram o seu realismo de filho do “povo eleito” e a consciência do mau nome no mercado da United Fruit. De “Fruteira” a “Polvo”, chamavam-lhe tudo. Zemurray tinha lido no livro Propaganda de Bernays, de 1928:

“A consciente e inteligente manipulação dos hábitos organizados e das opiniões das massas é um elemento importante da sociedade democrática. Aqueles que manipulam esse mecanismo desconhecido da sociedade constituem um governo invisível, que é o verdadeiro poder no nosso país… A minoria inteligente precisa fazer uso contínuo e sistemático da propaganda.”

Encontrou-se com ele em 1948 e começaram a trabalhar juntos nesse mesmo ano. Apesar de convencido da inexistência de qualquer perigo comunista na Guatemala, Bernays resolve então lançar um maquiavélico programa para convencer desse perigo a opinião pública americana. E porquê? Porque o fantasma do comunismo era o grande dissuasor, nos Estados Unidos, de qualquer apoio aos presidentes reformistas e porque as reformas modernizadoras e democratizantes de Arévalo e de Arbenz tinham sido e seriam prejudiciais para a United Fruit, que não pagava impostos e pagava salários de miséria aos seus trabalhadores.  É chocante e impressionante, no nosso tempo de suprema manipulação, do grande reality show orwelliano que nos vem dos noticiários mundiais e locais – por exemplo, na “cobertura” da campanha eleitoral americana para as presidenciais – redescobrir estes métodos e projectos.

Pois vai ser com base nesta estratégia e nestes interesses da dupla Bernays- Zemurray que a História se desenrola, pelo menos na história contada por Vargas Llosa.

Na narrativa, que vai seguir a História embora lhe vá introduzindo histórias, Zemurray e Bernays, através desta manipulação da imprensa liberal – do Washington Post, do New York Times, da Time – conseguem convencer a opinião pública norte-americana que o governo do presidente Jacobo Árbenz Gusmán é um governo pró-comunista que quer trazer os soviéticos para a América Latina. A partir daí, os irmãos Dulles – John Foster Dulles, Secretário de Estado, e Allen Dulles, Director da CIA – obtêm o assentimento do Presidente Eisenhower para derrubar o governo da Guatemala.

Na sua arte de jogador de espelhos, Vargas Llosa aparece no fim do livro a visitar Martita; está convencido da falsidade desta história inventada por Bernays: Árbenz não era comunista, era um reformista que pretendia mudar um pequeno país feudal, em que a United Fruit não pagava impostos e em que a maioria da população eram índios sujeitos a uma quase servidão. Nessa política, Árbenz seguia o seu predecessor Juan José Arévalo, eleito democraticamente em 1944, que se inspirara no New Deal de Roosevelt.

Como os grandes cozinheiros, os grandes escritores têm segredos. Normalmente gostamos do resultado, do que nos servem, mas às vezes e apesar das longas exegeses dos estudos críticos ficamos sem perceber todos os ingredientes e, sobretudo, as medidas da mistura.

O que é verdade e o que é invenção? Quais as personagens que são reais e quais as fictícias? E dos movimentos de uns e de outros, o que é realidade e o que é fantasia?

Não é fácil de destrinçar, quer na boa literatura, quer na alta cozinha. Em livros anteriores, em Conversacion en la Catedral e em La Fiesta del Chivo, Vargas Llosa contou outros cenários de ditadura, um à volta de um ditador menos conhecido, Manuel Odría, no Peru, e outro daquele que é talvez o mais famoso ditador da moderna América Latina – D. Rafael Leónidas Trujillo, da República Dominicana.

Ressentimento e Vingança de D. Rafael Trujillo

Segundo Vargas Llosa na apresentação pública de Tempos Duros, em Madrid, Trujillo está também ligado a este seu último romance, já que foi graças à confidência de alguém num jantar na Cidade da Guatemala que o escritor tomou conhecimento, com surpresa, de que o ditador dominicano teria sido o mandante da morte de Castillo Armas, o homem que, com a ajuda da CIA e cumprindo o guião de Bernays e da United Fruit, derrubara Árbenz em 1954.

E porquê Trujillo? Porque Trujillo, tal como Somoza da Nicarágua, ajudara Castillo Armas com dinheiro, com armas, com recursos humanos até. E queria, como contrapartida, três coisas – ser convidado para uma visita oficial à Guatemala, receber a condecoração mais alta do país, o Grande Colar da Ordem do Quetzal, e que lhe fosse entregue vivo um dirigente dominicano da oposição, que ali se refugiara. Pedidos relativamente modestos, embora possamos ficar a pensar, com (justificada) apreensão, no destino do “refugiado vivo”.

Mas Castillo Armas, uma vez no poder, mostrara-se ingrato com o seu benfeitor: nem visita, nem Grande Colar do Quetzal, nem refugiado oposicionista. Pior, segundo os relatórios do embaixador dominicano na Guatemala, quando bebia, o Presidente da Guatemala fazia troça da família Trujillo, particularmente do filho mais velho, Ramfis, um playboy de vida airada por quem o pai, que o fizera aos três anos coronel do Exército dominicano, tinha especial carinho.

Dizem que D. Rafael Leónidas não ligava muito ao mal que dele diziam, mas que se enfurecia quando lhe atacavam a família. Ora Castillo Armas, não só nada fizera para responder aos pedidos de Trujillo, como ridicularizava publicamente Ramfis, o seu filho muito amado. E é deste azedume que – segundo o autor – nasce a intriga de Tempos Duros.

O instrumento de vingança de Trujillo teria sido Johnny Abbes Garcia, uma figura real e sinistra de esbirro do ditador dominicano que chegou a chefe do SIM – o Serviço de Informação Militar. Na posse desta revelação, o autor introduz na narrativa Abbes Garcia – que Trujillo envia como Adido Militar à Guatemala com a missão de liquidar Castillo Armas. Abbes Garcia, que aparece como uma espécie de marginal, poderoso mas tímido, mal-enjorcado e com um quê de tarado sexual, cumpre a missão, socorrendo-se de cumplicidades locais, mata Castillo Armas e escapa. E nessa mesma noite, depois de ajudar a amante do próprio Castillo Armas, Martita Borrero, a sair do país, possui-a desalmadamente.

A arte culinária novelesca de Vargas Llosa está também no tempo e no modo de contar esta intriga, um híbrido de realidade e fantasia, de História e de ficção. Às vezes há saltos cronológicos e diálogos futuros antepõem-se a eventos por relatar; e é por essa mágica culinária do mestre-escritor, pela sua “endiabrada sabedoria”, que Vargas Llosa nos conduz através de uma teia de tempos e lugares que, no fim, se torna inteligível. E no meio, arrastados pela acção (embora haja compassos de espera da narrativa factual que demoram) estamos demasiadamente entretidos a saboreá-la para nos determos a descriminar sabores.

É Martita, a amante de Armas e o objecto de desejo de Abbes Garcia, a personagem fictícia que vai ligar a história – a Guatemala pré-Árbenz, a chegada de Castillo Armas, o fim do ditador, a República Dominicana dos Trujillo, o posfácio em que parte da história contada é posta em causa num diálogo entre a Martita já velha e retirada nos Estados Unidos, perto de Langley, e o  próprio Vargas Llosa. Martita Borrero “a quien, desde la cuna, por bella, viva y vivaracha apodaron Miss Guatemala” é, assim, a Ariadne desta história. É seduzida adolescente por um velho amigo do pai, fica de esperanças, é obrigada a casar com ele e foge dele para os braços de Castillo Armas, de quem é a amante oficial. Quando o Presidente é asassinado, foge outra vez, ajudada pelo tenebroso Johnny Abbes.

No seu tom flaubertiano, Vargas Llosa vai também exercer aquela justiça que, às vezes, a História traz imanente: o “mau” Abbes Garcia, elevado por Trujillo a chefe todo-poderoso das Secretas, cai com a morte do velho ditador, assassinado em 1961, segundo La Fiesta del Chivo. Abbes fica errando pelo mundo com a família, mas volta às Américas caribenhas, desta vez ao Haiti de “Papa Doc”, como consultor em métodos de extrair confissões. Mas ali vai morrer às mãos dos mais cruéis entre todos os cruéis capangas, os sinistros Tonton Macoutes, do ditador haitiano “Papa Doc”, Duvalier. Martita não confirma, no fim, esta versão. Diz que lhe mudaram a cara e o malvado também escapou para os States.

Antigos e Modernos

Porque nos fascinam tanto estas histórias de ditadores de repúblicas bananeiras ou petroleiras, os Rosas, os Francia, os Trujillo, os Somoza, os Duvalier, os Baptista, os Odria, os Marcos Pérez Jiménez? Ou os do outro lado, como Castro ou Chavez? A literatura de Ditador seduziu os modernos precisamente por nos colocar perante seres e situações que achávamos terem acabado desde o Mundo Antigo – o poder arbitrário dos “Doze Césares”, dos “reis loucos” dos contos medievais, dos condotieri italianos do Cinquecento. Instalados num poder quase absoluto, com um lado de tarados e caprichosos, há também neles um “factor humano” ligado ao dinheiro, à família, ao sexo, até ao desejo fútil de condecoração.

Mesmo as tiranias europeias modernas, de Hitler ou Estaline, não tinham o carácter arbitrário, grotesco, intuitivo, irracional destas personagens. Nas execuções do Despotismo Iluminado, dos regicidas, por exemplo de Damiens ou dos Távoras, há sadismo mas é um sadismo que ainda tem a ver com alguma racionalidade de razão de Estado, que procura ser exemplar e dissuasora. Assim como sobre os horrores dos campos de morte hitlerianos e comunistas, da URSS à China de Mao ou ao Cambodja dos Khmers Vermelhos, paira um certo racionalismo totalitário, um terror absoluto e implacável, que desindividualiza o mal.

Aqui, nestas Américas hispânicas – deixamos o Brasil para outra vez – há microtiranias com altos e baixos, estes ditadores assustadores e apalhaçados, ávidos de dinheiro, de poder, de sexo, são humanos, demasiado humanos, na sua maldade e vícios.

E Tempos Duros de Vargas Llosa é uma bela narrativa desse mundo, das suas paixões e contradições, dos seus crimes e dos seus castigos – e também do nosso, em que os mestres-cozinheiros da História e das histórias continuam a deixar-nos tantas certezas como dúvidas.

(Mario Vargas Llosa, Tempos Duros, Quetzal, Lisboa, 2020)