Tudo aconteceu porque um ministro inglês não sabe escrever bem. Depois de sair do governo, Matt Hancock, que foi ministro da Saúde de Boris Johnson durante a pandemia, queria ganhar dinheiro de uma forma fácil e rápida — coisa que em Inglaterra, um país de hábitos exóticos, se consegue publicando um livro de memórias sobre o seu tempo no poder. Mas, lá está, Matt Hancock não sabe propriamente escrever, por isso contratou uma jornalista para fazer o trabalho por ele, o que está longe de ser uma originalidade ou um crime. Não sendo alguém que possa ser descrito como tendo elevadas capacidades intelectuais, o ex-ministro da Saúde cometeu um erro inocente: com o nobre objetivo de lhe dar acesso a informação, entregou à jornalista todos os WhatsApp que enviou e recebeu durante a pandemia. São 100 mil mensagens trocadas com o primeiro-ministro, com outros membros do governo, com cientistas e com os mais altos responsáveis pelo Serviço Nacional de Saúde inglês.

Primeiro problema: a jornalista não se limitou a usar as mensagens para ajudar Matt Hancock a escrever o seu esforçado livro; pegou nelas e, por patriotismo ou dinheiro, entregou-as ao Daily Telegraph, que as revelou ao país num furo jornalístico a que deu o nome de “Lockdown Files” e que deixou a Inglaterra entre o choque e a fúria. Segundo problema: essas mensagens mostram as pessoas mais poderosas do regime a agirem de forma amadora, insensível, incompetente, cínica, infantil, negligente, hipócrita e, detalhe não irrelevante, fazendo um uso intensivo de emojis.

Em Portugal, não temos nenhuns “Lockdown Files” — mas temos a comissão parlamentar de inquérito à TAP. A CEO da companhia aérea teve que entregar vários documentos à Assembleia da República e, entre eles, estavam emails trocados com o Ministério das Infraestruturas. Há um que se destaca. Depois de lhe terem pedido que trocasse a data de um voo que traria o Presidente da República de Moçambique, prejudicando assim 200 passageiros que tinham decidido pagar por um bilhete, Christine Ourmières-Widener enviou um email ao então secretário de Estado de Pedro Nuno Santos pedindo-lhe conselho, mas dizendo-lhe que a sua “reação espontânea” ao pedido seria dizer “não”. Na resposta, Hugo Mendes escreveu isto:

“Bom dia Christine,
A minha reação espontânea é dizer sim :)
A sério: percebo que isto pode ser um incómodo para ti, mas não podemos dar-nos ao luxo de perder o apoio político do Presidente da República. Ele tem-nos apoiado no que diz respeito à TAP, mas se o humor dele mudar, fica tudo perdido. Uma frase dele contra a TAP ou o Governo e ele empurra o resto do país contra nós. Não estou a exagerar. Ele é o nosso principal aliado político, mas pode transformar-se no nosso pior pesadelo.”

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Está cá tudo o que já tínhamos visto nas trocas de mensagens dos “Lockdown Files”: o amadorismo de quem pensa que a TAP pode ser gerida como um minimercado de bairro; a insensibilidade de quem é indiferente aos planos de vida de 200 passageiros; a incompetência de quem não percebe que mudanças inexplicáveis de voos abalam a credibilidade de uma companhia aérea; o cinismo de quem pretende manipular o Presidente da República através de uma troca de favores; a infantilidade de quem escreve algo que nem deveria ser pensado; a negligência de quem é indiferente às consequências das suas ações sobre uma empresa em dificuldades; a hipocrisia de quem tem o discurso de que a TAP “é do povo” para depois a tratar como se fosse sua; e, claro, aquele “:)” que é a prova definitiva da informalidade com que uma nova geração de políticos encara o governo.

Em democracias liberais, os eleitores têm a expectativa de que os responsáveis políticos digam o que pensam e façam o que dizem. Mas, obviamente, nem sempre é possível confiar na natureza humana. Por isso, é bom haver regras que imponham a transparência e a memória. Nos Estados Unidos, por exemplo, tudo aquilo que um alto responsável político faz é registado, guardado, preservado e arquivado. Enquanto esteve na Presidência, Donald Trump tentava esquivar-se a estas regras. Tinha o hábito de rasgar e destruir papéis, atirando-os para caixotes de lixo, para o chão ou para a retrete. Sempre que o apanhavam a fazer isto, os assessores recolhiam os despojos e tentavam reconstituí-los. Faziam isso porque era o seu dever, de acordo com o Presidential Records Act. É uma lei interessante: depois de Richard Nixon ter tentado destruir documentos na sequência da sua demissão a seguir ao Watergate, o Congresso americano aprovou o Presidential Records Act para evitar que isso pudesse voltar a acontecer. De acordo com essa lei, os documentos de um Presidente são propriedade pública e não privada. Assim, nenhum Presidente pode rasgar qualquer papel que tenha escrito e deitá-lo ao lixo. Da mesma forma, nenhum Presidente pode enviar emails de uma conta privada — todas as comunicações têm de ser preservadas.

Se aplicássemos em Portugal a lei americana, o email enviado pelo secretário de Estado das Infraestruturas à CEO da TAP seria “do povo”, como gosta de dizer Pedro Nuno Santos. Mas, por cá, preferimos a informalidade, a inconsequência e a impunidade. Por isso, restam-nos as comissões parlamentares de inquérito. É um fraco consolo: imaginem o que estará nos emails que não conhecemos.