Com a apresentação das propostas do Governo para a regulamentação da imigração lembrei-me desta frase celebrizada durante a pandemia e espécie de manifestação de fé ou de querer em algo que ninguém controlava. Aparentemente, em matéria de imigração tudo pode ser controlado e o plano prevê soluções, a questão é saber se os mecanismos em que se passa a centrar a entrada dos candidatos no sistema, os consulados portugueses nos países de origem, vão ser porta ou muralha.
A experiência atual, nomeadamente, no que respeita aos consulados donde afluem os imigrantes asiáticos, apenas dois, Déli e Goa, não dão resposta sequer aos estudantes que se candidatam e estão já matriculados em escolas portuguesas, quanto mais a todos os outros.
É preciso ter consciência de que dos grupos maioritários de asiáticos, Índia, Nepal, Bangladesh e Paquistão, de onde afluem cada vez mais candidatos e que fornecem a esmagadora maioria de mão-de-obra para tarefas menos qualificadas, mas importantíssimas, agricultura e construção civil, não há, nem é fácil criar rapidamente as estruturas necessárias para que, na origem, os candidatos consigam estabelecer alguma relação com empresas portuguesas, ou com recrutadores locais articulados com as empresas portuguesas, celebrar um contrato de trabalho e um visto em tempo útil.
Em toda a nova regulamentação, este é o ponto mais crítico e onde tudo se pode desconjuntar, e falamos por experiência própria, embora relativa a um domínio em que temos experiência, o recrutamento de estudantes do ensino superior, agora integrantes dos grupos prioritários.
Tal como temos defendido em relação àquele setor, era absolutamente indispensável criar um sistema de acreditação de empresas de recrutamento capazes de constituir bolsas de interessados, de emparelhamento (matching) rápido candidatos-escolas/empresas, reconhecidas pelas autoridades portuguesas e trabalhando em estreita cooperação com os consulados locais.
É certo que o Governo fala do IEFP, mas sem colocar em causa o excelente trabalho que o instituto faz, em geral, nesta matéria não há informação pública que nos ajude a avaliar, sabe-se que a burocracia estatal é inimiga de soluções rápidas e práticas e convém não misturar o que são funções do Estado, emitir vistos, com o que deve pertencer à iniciativa do mercado, ou seja, divulgar oportunidades de trabalho em Portugal por áreas de especialização, constituir bolsas de interessados com as respetivas qualificações, articular-se com as empresas e escolas portuguesas e promover a convergências entre uns e outros no momento próprio.
Esta solução teria imensos benefícios, desde logo impedir que as máfias instaladas conseguissem manter o recrutamento e os canais oleados existentes para abastecer empresas portuguesas de mão de obra pouco especializada, criando situações de dupla exploração dos imigrantes, primeiro às mãos daquelas, depois de empresários sem escrúpulos.
Impediria, ou limitaria bastante, o recurso dos empregadores a mão-de-obra ilegal, agora justificação para suprir necessidades de trabalho imediatas e para as quais não há trabalhadores legais em número suficiente. Como é evidente, para quem tem de respeitar o calendário de uma empreitada de construção civil ou colher fruta num tempo determinado, recorrer a mão de obra de qualquer tipo é uma tentação, deixando para segundo plano o cumprimento das questões legais, tanto mais que quase sempre, nestas áreas, o incumprimento compensa.
Os trabalhadores querem ganhar a vida e, se ilegais, menos problemas querem, são explorados, mal tratados, mal instalados, mas não se podem queixar; os patrões querem o trabalho feito e o risco sempre se mostrou vantajoso, as fiscalizações são insuficientes e, certamente por mero acaso, quando são realizadas, poucos ilegais encontram, não que lá não tenham estado, mas apenas por que alguém muito oportunamente os avisou que naquele dia era melhor ficarem em casa. Não é caricatura, é a realidade.
Quanto à questão das qualificações, agora tornada central no processo, é necessário desmistificar o conceito. Primeiro, o que é um trabalhador qualificado? Dois exemplos, médicos e enfermeiros são trabalhadores qualificados no país de origem, mas em Portugal são candidatos a um calvário de exigências e a anos de trabalho, despesas e frustrações, até conseguirem ver as suas habilitações reconhecidas ou desistir e trabalhar em funções abaixo daquelas para que estudaram e obtiveram graus no seu país. Não é sequer uma crítica ao sistema, é apenas uma constatação, e há inúmeros outros exemplos.
Passando para os antípodas, um trabalhador da construção civil ou da agricultura pode ser qualificado ou até muito qualificado, mas generalizou-se a ideia de que qualquer um serve para a função e basta ouvir as queixas dos nossos empresários sobre a mão-de-obra que se veem obrigados a contratar para se perceber do que estamos a falar.
Outra questão relevantíssima, Portugal confronta-se com inúmeros países carentes de mão-de-obra, a maior parte deles mais atrativos do que nós em termos remuneratórios, o que significa que temos de fazer mais e melhor para captar os imigrantes “que nos interessam”, sim, alguns defendem a ideia de que a porta deve estar aberta para todos, mas se cada um de nós só abre a porta da nossa casa a quem quer, porque motivo há de um país ter a sua fronteira, o seu território, as suas comunidades abertas a quem queira entrar, sem qualquer limitação? Estamos a pensar primeiro nos nossos interesses ou nos dos outros, por muito solidários que sejamos?
Obviamente, é necessário ter filtros e o melhor para todos é que esse processo decorra a montante e que as pessoas quando chegam a Portugal venham com a certeza de que reúnem todas as condições legais e de que as espera um país acolhedor, cujas autoridades zelam pela legalidade das suas condições de trabalho e de alojamento, lhes propiciam serviços de saúde, assistência social e educação, entre outros, imprescindíveis para serem membros das comunidades onde se integrem.
Evidentemente, tem de haver alguma válvula de segurança no sistema para pessoas que aqui afluem com vistos de turismo ou outro precário e, entretanto, conseguem um emprego e aqui pretendem ficar. A expulsão sem apelo, nem agravo, não deve ser uma regra cega e é importante analisar cada caso.
Uma palavra para o reagrupamento familiar que nos parece não ter sido bem formulado, ou divulgado, não se trata apenas de trazer jovens para se juntarem aos pais, é fundamental que possam vir famílias em idade fértil, Portugal necessita de novos portugueses e são os imigrantes que atualmente já equilibram o envelhecimento acelerado do país e são eles, e apenas eles, que poderão impedir que o país se afunde num futuro não muito longínquo. Basta olhar para o panorama das reformas futuras e para a sua dramática descida, para perceber que ou mudamos o rumo do país ou legaremos às novas gerações um país de milhões de velhos miseráveis.
Os imigrantes não nos fazem apenas falta, eles são a esperança da continuidade do país, basta olhar para o “tempo longo” da História para perceber o que se passa com a Europa e com Portugal, em particular, deixámos de ter capacidade para nos mantermos uma comunidade viável, a endogamia portuguesa está esgotada, ou aceitamos esta realidade ou iremos deslizando para o silêncio dos tempos.
É aqui que faz sentido a frase pandémica “Vai ficar tudo bem”. Ficará?