Ao longo dos tempos habituámo-nos a gerir a privacidade a uma escala humana, no quadro daquilo que foram sendo as nossas interações com um mundo físico, tangível, próprio de um espaço e de um tempo onde os valores sociais reforçaram o personalismo e uma esfera íntima que as conquistas das diversas Revoluções Industriais e do progresso tecnológico tão bem patrocinaram.

É, pois, quase pacífico afirmar que a privacidade é um direito que se consolidou como consequência de conquistas civilizacionais e culturais próprias de mais de dois séculos de progresso industrial e tecnológico que permitiram melhorias significativas na qualidade de vida de todas as camadas da população, sendo a sua valorização vista como um dos expoentes atuais da dignidade humana.

A mesma tecnologia que disseminou o saneamento básico, que permitiu acesso a habitação de qualidade ou progressos na medicina (que possibilitaram a diminuição da mortalidade infantil, a quase erradicação da subnutrição, a emancipação da mulher ou o aumento da esperança de vida) – que, em suma, foi a principal aliada na afirmação da Privacidade enquanto valor central da cultura ocidental moderna e pós-moderna –, é hoje responsável, – em sentido inverso – pela sua depreciação e, até, pela sua desvalorização por parte de largas camadas da população.

Para lá de uma dimensão física e tangível, o progresso tecnológico empurrou-nos a todos para uma esfera virtual, intangível, onde permanentemente inscrevemos informações – a que chamamos “dados” –, expressões de afetos, patrimónios, opiniões, representações da nossa imagem e personalidade, que se interligam para criar uma proto-realidade. Esta proto-realidade forma-se a partir de meras sombras do real, as quais, ainda que desligadas da Pessoa, a moldam, a relacionam, a condicionam, criando imagens de si que a própria (pessoa) frequentemente não (re)conhece.

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O ciberespaço representa o triunfo do universo sonhado pelo surrealismo, um mundo dominado por fragmentos imaginários do mundo real, um espaço com regras próprias onde habitam monstros e fantasmas, para onde todos viajamos e para onde todos transferimos sonhos, pesadelos, ansiedades, opiniões, muitas vezes com projeções freudianas em que nos libertamos do nosso “Eu Real” para construir “parcelas de Nós” as quais abandonamos na memória eterna da “Rede”. O ciberespaço guarda estes pedaços do nosso “Eu desgarrado”, tantas vezes sem contexto, sem continuidade, sem qualquer corporeidade, sem um “Eu completo” que o explique e lhe dê sentido, sem uma noção de espaço, tempo ou pertença. Estes “fragmentos do Eu” ganham a forma de Musas ou Monstros que, perpetuados na memória digital, frequentemente regressam caprichosamente ao mundo real convocados por quem domina o Espiritismo Digital.

Durante milénios a humanidade procurou relacionar-se com o transcendente, com formas espirituais que se situavam para lá de si, situadas numa dimensão não tangível. Com o digital, passamos a ter essa relação com um certo transcendente de uma forma recorrente e frequentemente biunívoca. Como conviver com este “Além” digital é um dos maiores desafios, não apenas tecnológico, mas também normativo e cultural. Qual o impacto que o Planeta Digital tem sobre a construção da nossa personalidade? Seremos capazes de viver com os nossos fantasmas num ambiente de memória permanente? A quem pertencem os “fragmentos do Eu” que libertamos ao longo do tempo no ciberespaço? Que impacto tem a memória digital nas noções de Passado, Presente e Futuro? E como garantimos num contexto de condicionamento da memória o exercício da Liberdade?

Terá sido a privacidade um valor efémero, um privilégio com dois séculos na História da Humanidade? Teremos perdido a possibilidade de aprender com os erros na formação da sua personalidade e identidade? Se o esquecimento é uma característica da memória humana, como será que nos vamos moldar perante a pré-existência de uma memória permanente e inter-relacional que se projeta no Infinito? Teremos espaço para afirmar uma memória digital que esquece, perante um mundo futuro onde tantos aspiram a sublimar artificialmente o cérebro humano? Qual o papel do arbítrio perante cérebros artificiais, será o arbítrio “parametrizável”? Quais os pressupostos futuros da formação da vontade, irá ela sobreviver como a conhecemos aos condicionamentos do “Big Data”? O que significa “liberdade” num mundo 4.0? Quais as literacias necessárias para resistir ao domínio da “Sociedade da Informação”?

Se até hoje as dimensões real e virtual eram tangibilizadas em separado, como universos paralelos, com a afirmação de novas tecnologias ancoradas no 5G e no emergente 6G, e a construção conceptual que suporta o “metaverso”, os líderes da indústria digital procuram fundir as duas dimensões numa experiência imersiva onde tudo o que sentíamos até hoje, “projetado”, passará a ser parte do “mundo real”. O metaverso e todas as soluções imersivas emergentes são, no fundo, tentativas de fazer da dimensão virtual, não uma extensão, mas parte da realidade, ampliando as possibilidades que até hoje sempre sentimos limitadas pela noção de espaço e tempo. Vemos hoje empresas a comprar e vender terrenos no “metaverso”, mas como se enquadrarão estas transações ao abrigo dos direitos reais? No plano laboral, poderemos ser forçados a trabalhar no metaverso, e em que condições? No plano fiscal, como são tributadas as operações realizadas no metaverso? Como funcionam os crimes contra as pessoas, poderemos ser vítimas de violação quando tal se projete nos nossos avatares? A que jurisdição obedecem todas estas transferências de dados?

Hoje, há muito mais perguntas e dúvidas do que respostas. Nada que seja (ainda) grave ou preocupante pois, – sejamos claros – o metaverso é para já muito mais uma ambição e menos uma realidade com impacto nas nossas vidas. Mas, como sabemos, as revoluções, num primeiro momento, e de forma ruidosa, fazem-se nas disrupções da tecnologia, sem grandes impactos visíveis nas nossas vidas; é com a massificação das tecnologias, nos momentos posteriores, que elas acabam por silenciosamente afirmar os seus pressupostos e alterar a cultura e o nosso modo de vida. Cabe-nos aos que pensamos o impacto da tecnologia nos comportamentos humanos antecipar e procurar nas leis e nas literacias os bálsamos para amenizar o seu potencial totalitário.