Nas próximas décadas vamos assistir a uma redução significativa e progressiva da precipitação no território do continente. Este novo clima, mais árido, afeta já a agricultura, estando a conduzir a alterações nas culturas, no seu modo de condução e, acima de tudo, no consumo de água. Os períodos de estio têm sido cada vez mais prolongados e intensos, com situações em que mesmo o abastecimento das povoações esteve pontualmente em risco. Já Orlando Ribeiro distinguia o país atlântico do mediterrânico, e a mudança climática parece agravar essa diferença.

No Algarve e no sul do Alentejo, os períodos de seca extrema vieram para ficar. No primeiro caso, o desenvolvimento do turismo e das atividades com ele relacionadas disputa com a agricultura os poucos recursos em água, sempre que o nível das barragens da região desce perigosamente. Apesar da insuficiente qualidade dos números existentes, o setor agrícola é o grande utilizador, assumindo o papel de vilão da água, ou de herói da segurança alimentar, conforme os pontos de vista.

A única forma de reduzirmos o impacto da diferença entre os regimes de pluviosidade do Minho ao Algarve é conhecida desde há muitas décadas: uma grande interligação assentando num conjunto de canais e estações elevatórias com um comprimento total de cerca de quinhentos quilómetros, ligando barragens existentes, de norte a sul. Estudos com décadas apontam para a possibilidade de uma construção faseada. A primeira etapa ligará o Alqueva ao Pomarão e este a Odeleite num total de 35 km. Uma segunda fase ligaria a barragem do Fratel ao Caia num total de 115 km. Finalmente a ligação entre o Pocinho, no Douro, ao Castelo de Bode, por um conjunto mais complexo de conexões envolvendo diversas barragens até ao Fratel, com 95 km de extensão, completaria o sistema.

Como seria de esperar existem vozes discordantes. A organização não governamental “zero”, por exemplo, tem uma opinião negativa sobre este empreendimento e considera que não deve ser construído. Os argumentos que apresenta são três. Considera que não existem garantias de que o Norte possua excesso de água doce que possa ser cedida, baseando esse entendimento na análise do ano de 2022, um dos mais secos de sempre, no qual se verificaram condições extremas na região norte, tendo sido necessário recorrer a autotanques para abastecimento às populações. Considera também que o transporte de água do Norte para o Sul do continente poderá ser gerador de conflitos regionais. Considera ainda que a realização de transporte de água, que diminua as restrições que têm existido no sul do Alentejo e no Algarve, irá facilitar o desperdício.

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Comecemos pelo primeiro argumento. Se considerarmos o “ensemble” de modelos que é fornecido pelo Portal do Clima do IPMA, a região norte no seu conjunto, entre 1971 e 2000 apresentou uma média de precipitação anual de 1564 mm. No fim do século, no cenário mais gravoso de emissões, conhecido por RCP8.5 esse valor descerá para cerca de 1385 mm. Ao mesmo tempo a região do Algarve passa de 594 para 453 mm. Enquanto o norte perde 11% o sul, que parte de um nível bem mais baixo, perde 24%. Outros modelos darão valores algo diferentes, mas as tendências são estas. Se considerarmos que a água disponível corresponde apenas à que precipita localmente, não considerando o transporte fluvial, então é fácil concluir que a necessidade de apoio irá aumentar com o tempo. Se na situação atual estamos perto de situações de falta de água para abastecimento no Nordeste, então a capacidade de armazenamento nesta região tem provavelmente de ser também equacionada.

Mesmo com uma gestão integrada haverá períodos difíceis. Serão eles a origem de conflitos regionais? Não pode haver certezas sobre os comportamentos futuros, mas ao fim de nove séculos temos uma grande coesão nacional e solidariedade. A chuva continuará certamente a cair mais a norte que a sul, e os rios portugueses continuarão a transportar uma parte da precipitação que ocorre em Espanha. Nada na nossa história aponta para um cenário de egoísmo regional, apesar de alguns sobressaltos. Os recursos minerais, por exemplo, são de todos e não apenas daqueles que vivem perto das jazidas minerais, como mostra a discussão à volta do lítio. Se a gestão for transparente e atempada, se a estrutura de custos for equilibrada e justa, se a disponibilização de água for planificada e fiável, a atividade económica pode ser organizada, os investimentos seguros na medida do possível, e seremos fiéis à obra de misericórdia “dar de beber a quem tem sede”, o que permitirá também “dar de comer a quem tem fome”.

O terceiro argumento diz respeito ao pressuposto de que se for disponibilizada mais água à agricultura do sul, esta terá tendência a portar-se mal. Que entre “reduzir o desperdício” e “disponibilizar água” pode ser estabelecida uma relação de prioridade. Este argumento tem sido levantado em público de forma recorrente, mas não tem sentido. Dificultar a disponibilização de água doce assume aqui um carácter moral, quando a verdade é que é necessário trabalhar em simultâneo nas duas vertentes. Não por acaso as duas obrigações – disponibilizar e reduzir o desperdício – cabem em Portugal à mesma entidade. É também importante reparar que uma gestão muito estrita da rega que utilize o mínimo possível de água junto das culturas, tem igualmente impacto porque reduz as áreas húmidas e as charcas temporárias, o que também tem impacto ambiental. A água que se perde nas condutas vai sempre para algum lado.

Podem ser estabelecidas regras de troca de água entre bacias que dependam do bom uso deste recurso. Mas esse julgamento não pode ser feito por quem cede, nem por quem recebe, mas sim por um decisor independente. O estado de direito ainda é a melhor arma que se conhece para evitar litígios regionais.

Qualquer transferência de água entre bacias hidrográficas tem de ser feita de forma a preservar ao máximo a independência dos ecossistemas. Temos de aprender com o mundo natural, e procurar soluções com ele compatíveis, mas já há muito passou o tempo em que podíamos depender da natureza de forma passiva.

A discussão atual sobre a “grande interligação” lembra demasiado as décadas de indecisão sobre o Alqueva. As teorias catastrofistas. Os preconceitos sobre as culturas que deveriam ser feitas ou não feitas. Os futuros imaginados (para os outros) onde as ocupações de baixa densidade e muito baixo rendimento adquiriam uma imagem idílica, desligada do que implica para as comunidades sedentas, como nós todos, por interação e conhecimento. Reconhecer hoje que “afinal até não é tão mau” é importante, mas não compensa a pressão insensata, alicerçada em convicções profundas, mas desligada de conhecimento sólido. Todos podemos errar, alimentando em nós o velho do restelo que também somos, mas há alturas em que temos de ver mais longe do que a nossa altura sugere.

Ao fim de alguns séculos já quase que nos habituámos a que uma decisão desta magnitude leve uns sessenta anos a tomar, como um cozinhado muito lento na panela da indecisão. Em 1994, um grupo de jovens fartou-se de esperar, e escreveu num pontão que atravessa o Guadiana, uma frase que se tornou viral, acentuada por três pontos de exclamação, e que teve o efeito inesperado de chamar a atenção para a impossibilidade de ser alimentada mais tempo a discussão em torno da construção do Alqueva, com opositores e defensores distribuídos por quase todas as forças políticas. Por vezes devemos parar para pensar, outras parar para agir. Estamos na altura de retomar esse espírito: interliguem-me porra!!!