Pouco haverá de mais visceral do que aquele desejo de saber quem realmente somos, conhecer detalhadamente a linhagem de que provimos. No preciso momento em que, colectivamente, parecemos apostados, mesmo que hesitantemente, na renúncia à mediocridade, à manha, ao fingimento, à momice, ao embuste e a uns quantos outros atavismos de esquerda, era bom que ousássemos puxar o fio da nossa jovem democracia para percebermos quando se cindiu. E a tragédia muito nos tem a dizer sobre bífidos fios.
Não é por acaso que o Íon – à semelhança de muitos dramas posteriores sobre nascimentos clandestinos e crianças reunidas com os seus pais biológicos há muito perdidos, corteja a farsa, ao mesmo tempo que explora os cantos mais sombrios da imaginação emocional. Por vezes triunfa a farsa; noutras, a tragédia. De certa maneira, o outro lado de Édipo Rei é The Importance of being Earnest.
Íon, de Eurípides, é uma peça sobre um rapaz com dois pais. No decorrer da ação, um jovem órfão, um acólito no templo délfico de Apolo, conhece a sua mãe biológica, encontra um extremoso pai adoptivo e descobre a verdadeira identidade do seu pai ausente e invisível – o próprio deus Apolo. Devido à ênfase na paternidade, é evidente que é uma peça sobre a identidade, sobre descobrir quem somos, identificando quem nos gerou. Um tema perfeitamente apropriado a uma peça situada em Delfos, o lugar que os gregos acreditavam ser o centro do mundo, omphalos tou kosmou, “o umbigo do mundo”; pois o oráculo de Apolo em Delfos providenciava respostas enigmáticas àqueles que chegavam em busca de autoconhecimento. O destino de Édipo foi profetizado aqui, em Delfos; foi na estrada que liga Delfos a Tebas que Édipo, que fora abandonado na infância e acreditava que os seus pais adotivos eram os seus pais biológicos, conheceu o seu verdadeiro pai, um estranho, e involuntariamente cumpriu a profecia matando-o. Dado o jovem herói de Íon ser o mítico fundador da estirpe que leva o seu nome – os jónicos – é também uma peça sobre a identidade dos atenienses, que pertenciam à tribo jónica e, portanto, da própria Atenas: não apenas de um rapaz, mas da sua cidade e da sua civilização.
O Íon vive obcecado com a genealogia: no prólogo ficamos a saber que Creusa, uma princesa ateniense, foi violada por Apolo. Depois de, em segredo, ter dado à luz um menino, ela abandona-o, colocando-o numa cesta com alguns símbolos da sua linhagem real: as serpentes douradas, um rebento de oliveira, um pedaço de um bordado que Creúsa tecera com um desenho das cabeças das Górgonas. Regressa a casa pensando que a criança está morta. Sem que ela o saiba, o irmão de Apolo, Hermes, foi instruído para recolher a cesta e depositá-la nos degraus do templo de Apolo em Delfos. Aí o menino é descoberto pela própria Pítia, a antiga sacerdotisa do santuário oracular, e criado ao serviço do deus que é, sem ele saber, o seu próprio pai.
Aqui, muitos anos depois, quando o rapaz é já um adolescente, chega Creusa, em busca de conhecimento do oráculo. Há já muitos anos que ela é casada com Xuto, um príncipe estrangeiro que providenciou auxílio crucial a Atenas durante uma guerra que, segundo o oráculo de Delfos, a cidade venceria se o rei sacrificasse as suas filhas; o que ele fez. A guerra foi vencida. Embora não seja de origem ateniense, Xuto é recompensado com a mão de Creusa, a única filha sobrevivente; o rei agradecido faz do estrangeiro o seu herdeiro. Mas o casamento, estranhamente, não produz descendência, e é por causa de um anseio por filhos – uma ânsia tão poderoso que Eurípides a descreve como eros, palavra usada para designar o desejo erótico – que, anos depois, Creusa e Xuto se dirigem a Delfos, em busca de uma resposta para o enigma da ausência de prole.
Depois de Creusa e Xuto chegarem a Delfos, ela conhece o jovem acólito que serve no templo de Apolo; embora amargurada com o deus que a violou, sente-se estranhamente atraída pelo jovem que serve o seu santuário. Íon sente-se também misteriosamente atraído por esta mulher, e envolvem-se ambos numa conversa em que cada um revela uma dor secreta: para um, uma mãe desaparecida, para a outra, a falta de um filho. O vínculo entre ambos é palpável.
Xuto, entretanto, entra também no santuário, onde, em resposta às suas súplicas, é informado de que o primeiro rapaz que encontrar depois de deixar o templo será seu filho Acontece que é no servo do templo que Xuto tropeça à saída do santuário.
Como a maioria dos exemplos de deus ex machina, a improvável aparição de Atena, irmã de Apolo, no final do Íon, também esta não satisfaz completamente, deixando o público, senão os próprios personagens, com mais respostas do que perguntas. Para além da questão do embaraço de Apolo, da sua recusa, mesmo no final, de se mostrar ao filho, persiste a questão da dupla paternidade, o rapaz com dois pais, Apolo e Xuto, o invisível e o visível: por um lado, o ausente imortal que o gerou, oferecendo-lhe a sua identidade genética, a natureza divina que fará dele um líder de tribos, nações e civilizações e, por outro lado, o homem mortal que, no final das contas, o verá crescer, guiando-o, mesmo não sendo tão poderoso como o secreto pai de que o menino tem conhecimento, mas que nunca poderá conhecer. Como a maioria das tragédias, Íon deixa-nos não com uma resposta, mas com um paradoxo. Na ponta da nossa busca pela identidade, parece o Íon dizer, a busca pelo conhecimento verdadeiro e absoluto da nossa composição genética e das características que fazem de nós sempre, repetida e inalienavelmente nós mesmos, pode não estar uma resposta única, mas um outro enigma, cuja resposta será desconhecida para todos, excepto para nós: podemos muito bem ser duas coisas, um filho de dois pais.