O princípio que coloca um fim ao reino de Úrano é aquela insaciável fome de tempo, a fatal necessidade de durar: foi Cronos, o mais rebelde filho de Gaia, quem destronou o pai – Cronos mutila o seu pai ceifando-lhe os genitais de cujo sangue nasceram as Erínias que, acenando tochas acesas, enlouquecem os homens, iluminando o seu remorso enquanto saem pela esquerda baixa.

O sangue de Úrano abre uma ferida na criação, um desconforto no caos da imanência. A impassibilidade da matéria ver-se-á para sempre maculada pela vida, essa irresolúvel tensão entre desejo e remorso: desejar regressar onde se pudesse desfazer o mal que tivesse havido e a culpa rilhada por não ser já possível fazê-lo. O caos inicial, longe de apaziguado, ameaça-nos a cada instante.

A Teogonia consiste numa narração mítica da criação enquanto dilatação evolutiva da culpa e como esforço progressivamente mais intenso para superá-la. A experiência do ser é a de quem se sente ‘ex-pulso’ (literalmente, empurrado para fora): atravessando o tempo, vive-o, mas não lhe pertence verdadeiramente, como se a alegria da chegada a cada instante se visse abreviada no melancólico e imediato dever de partir rumo ao instante seguinte. Como viver o tempo se ele permanece somente quando passa, passa apenas quando fica e só se oferece na experiência da sua fuga pela qual, hélas, nos escapa?

Durante 27 anos, Deanna Dikeman fotografou os pais acenando-lhe do alpendre da sua casa enquanto, já no carro (é comum no enquadramento aparecer um retrovisor ou um painel de instrumentos) e após a celebração de aniversários, natais, Thanksgiving e outras festas familiares, se preparava para partir daquela que fora a casa da sua infância, no interior dos Estados Unidos. Começou a tirar essas fotos, umas quatro ou cinco por ano, em 1991 sem qualquer intenção artística – era uma espécie de private joke familiar, progressivamente transformada em ritual de despedida – embora a gradual percepção da sua sequência ilustre o paradoxo agostiniano: se o presente, por ser tempo, tem de se delir no seio do passado, como poderemos vislumbrar o que ele é, se ele só pode ser deixando de ser?

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Aquilo que é oferecido a quem as contempla – as fotos foram dadas à estampa, em 2021, com o título Leaving and Waving – é a inexorável ruína dos instantes e o facto de muito poucos serem verdadeiramente habitação para o homem: acenando, como Alcíone e Egeu num mítico alpendre, à filha que parte, aqueles anciãos saúdam verdadeiramente a mácula de existir, a duração, oferecendo o seu rosto à intempérie de o tempo os habitar. O que impressiona nessas fotos não é uma abstracta passagem do tempo, mas os despojos carnais e vívidos – a alternância entre neve e sol, os ramos frondosos e as folhas caducas espalhadas pelo patim, as rugas, as costas mais curvadas procurando apoio em bengalas que, nas fotos anteriores, não eram ainda necessárias – que a tensão entre desejo, remorso e culpa vai lavrando nos rostos daqueles anciãos.

Em 2009, surge uma fotografia onde o pai, pela primeira vez, não aparece: morrera alguns meses antes. A mãe, embora de rosto cada vez mais desamparado, continuou a acenar à filha até 2017, ano em que também ela morreu. Após as cerimónias fúnebres, Deanna arrisca uma última fotografia do alpendre, a mais árdua e grave talvez: qual o enquadramento para a ausência onde ainda cintilam os despojos dos rostos em cujo amor aprendemos a habitar o mundo e a interpretar as suas imagens? Como preencher o vazio de uma plenitude? Como suportar os seus acenos?

Somos, no interior do tempo, a consciência que o próprio tempo não pode ter de si, oferecemos-lhe voz e gestos, muito embora alguns pouco mais herdem que um muito provisório nome e uma sórdida obrigação de o arrastar competentemente até ao limiar da mais cruel das mortes – a da memória – porque temerariamente julgam assumir o que não lhes compete ou porque Cronos assim se vinga de tamanha soberba.

Giovanni Paisiello é provavelmente um dos melhores exemplos de uma tangente meticulosamente traçada ao aceno das Erínias: tendo escrito 96 óperas (são dele uma série de árias sobre as quais Beethoven compôs variações bem como a primeira encenação de O Barbeiro de Sevilha), 11 missas, 46 peças para a capela de Napoleão, para além de diversíssimo outro trabalho de natureza sacra e profana, prima hoje pela completa ausência de qualquer programa.

Em 1789, compôs uma ópera de um acto só – Nina, o sia la pazza per amore – narrada por Susanna, a governanta da protagonista: Nina enlouqueceu por o seu casamento com Lindoro – união abençoada pelo conde, pai de Nina – se ter gorado pelo aparecimento de um pretendente de melhor estirpe, que fez com que o conde voltasse atrás com a sua palavra. Após um duelo entre ambos os pretendentes, Lindoro cai mortalmente ferido. Desde então, alheada do mundo, Nina passeia-se em cabelo pela aldeia e conduz o seu desvairado vazio até aos limites da povoação onde, todos os dias ao final da tarde, canta a ária mais famosa da ópera – Il mio ben quando verrà – reivindicando às aves, às flores, ao vento, os destroços de um amor que não se cumpriu.

Um pouco antes de o pano descer – uscendo ed accennando, diz a didascália – Nina desaparece pela esquerda baixa.