Se a greve é um direito, a saúde, educação e os transportes públicos também o são, e quando estes últimos esbarram frequente e reiteradamente no primeiro, o Estado deveria regular o direito à greve, sob pena de pôr em causa os demais.

Não conheço ninguém que não defenda a importância do direito à greve no nosso país, mas não me eximo de dizer o óbvio, que sou seu defensor e que não o questiono. Acontece, porém, que sou igualmente defensor de um forte serviço público de saúde, educação, justiça e de transportes públicos.

É impossível escamotear, deem-se as voltas que se queira, que há um abuso no recurso ao expediente da greve em Portugal, particularmente nos setores dos transportes, educação e saúde (públicos). E com a desculpa de preservar a inegável conquista que foi o direito à greve fomos colocando em causa direitos igualmente fundamentais, alguns constitucionalmente previstos, de forma repetida, frequente e incompreensível.

A greve, nos setores supramencionados constitui, aliás, um dos poucos direitos constitucionalmente previstos que efetivamente é garantido aos cidadãos, estando, portanto, na prática, acima de outros que são, por conseguinte, são relativamente menos importantes, como são a saúde, a educação e os transportes, aqui citados por serem os domínios em que se atinge o expoente máximo da desregulação grevista. E se o Estado prevê determinados deveres, liberdades e garantias aos cidadãos, deverá, por maioria de razão, regular direitos que sejam conflituantes ou mutuamente exclusivos. Como sabemos, há largas dezenas de greves anualmente, quando não centenas, nestes setores, o que prejudica particularmente as camadas menos favorecidas da população, nomeadamente os que não podem pagar saúde e educação privada e não têm automóvel particular, ou condições financeiras compatíveis com uma utilização rotineira de táxis.

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A lamentável e suprema ironia, é que, sempre com a capa de estarem a defender o serviço público, sobretudo nos setores da saúde e da educação, a verdade é que têm o resultado exatamente oposto. Ao invés de defender o serviço público estamos a contribuir para o desmantelamento do mesmo, senão vejamos:

Na Saúde, a incerteza sobre a fiabilidade e disponibilidade dos serviços afetam a perceção de segurança das populações, e não sendo a única justificação, são uma das que explica o aumento do número de seguros de saúde em Portugal, um aumento de 1 milhão, ou de 33% em 8 anos. A consequência é que o SNS se torna, cada vez mais, um serviço para os menos favorecidos, com a consequente degradação do serviço, numa espiral que teimamos em não reverter.

Na Educação, as greves têm um impacto enorme, desde as aprendizagens não adquiridas pelos alunos, até à compatibilização da vida pessoal e profissional de pais de crianças até aos 10 anos. Os resultados dos famosos testes Pisa, ilustram a degradação dos resultados da escola pública, não obstante a redução geral de alunos, decorrente da situação demográfica, o ensino privado ganhou 5.000 alunos (entre 2020 e 2023). Além disso, em 20 anos, perdemos 300.000 alunos em Portugal, mas o Ensino Privado ganhou 337 alunos, e há que considerar que entre 2016 e 2021, com o fim dos contratos de associação, deixaram de poder frequentar o privado por falta de condições financeiras para tal um total de 30.216 alunos. O crescimento relativo do ensino privado é, portanto, avassalador e representa já hoje 21% do total de alunos. Sabendo-se da relevância da Escola pública como alavanca para a ascensão social, a criação desta realidade estanque em que os filhos dos pais privilegiados tem melhores condições de aprendizagem enquanto os pobres são pior servidos tende a exacerbar as desigualdades sociais, num dos países mais desiguais da União Europeia. Temos que travar a fundo a mudar o sentido de marcha.

Nos Transportes urbanos, situação que afeta sobretudo as áreas metropolitanas de Lisboa, Porto, Braga e Coimbra, a situação é vergonhosa. Há um desrespeito consistente dos passageiros que pagam para ter acesso a um serviço (diretamente e via impostos) e são frequentes indisponibilidades do mesmo. Mais uma vez, os que podem utilizam o seu carro particular, mas, quem não o tenha fica entre a contingência de não viajar, perdendo o dia de trabalho, ou chamar um táxi para completar o percurso, gastando assim uma fatia não despiciente, quando não a totalidade, do seu rendimento líquido diário.
Todavia, aquilo a que se tem assistido, é uma complacência avassaladora da generalidade das forças políticas para com este assunto nas últimas décadas. Se os setores mais à esquerda são muitas vezes cúmplices do abuso que existe das greves nos setores mencionados, entre os partidos mais à direita, há um silêncio envergonhado e uma aparente cedência ao desígnio socialista previsto na nossa Constituição de 1976.

Como sabemos, as greves são quase um exclusivo do setor público, constituindo por isso, uma arma de combate partidário que considero lamentável e condenável, enquanto se instrumentalizam os trabalhadores para que se atinjam objetivos políticos, não raras vezes, alheios ao interesse dos grevistas.

Acresce que, a patente desigualdade no recurso ao expediente à greve é imoral, e, dever-nos-ia fazer refletir. Sabemos como as condições laborais no setor da educação pré-escolar são muito melhores no setor público do que no privado, além de que este último é muitas vezes precário, não obstante, há incomensuravelmente mais greves no setor público do que no privado. Que o Estado queira dar o exemplo e dê melhores condições do que no privado sempre que possa, faz todo o sentido, agora que se aceite com um silêncio cúmplice que portugueses com muito melhores condições laborais que outros que desempenham as mesmas funções abusem do recurso à greve quando os seus colegas do privado não o fazem (seja por não quererem ou não poderem), deveria ser uma motivação adicional para fazer uma reforma da legislação laboral.

Urge, por isso, que se olhe de forma racional e desapaixonada para a temática das greves no setor público, considerando o enorme impacto em setores críticos e fundamentais para o funcionamento do Estado e bem-estar dos cidadãos, e se discutam ideias tais como:

impedir greves à sexta-feira, à segunda-feira ou em dias de ponte;

fiscalizar as situações fraudulentas, em que, por exemplo, faz greve um número mínimo de funcionários para que uma escola feche, e todos fiquem sem trabalhar, situação rotativa entre os funcionários de forma estratégica;

proibir e fiscalizar situações em que os sindicatos dão aos trabalhadores compensações pelos dias não trabalhados;

limitar o número máximo de greves por cada ano de trabalho (vivemos numa economia livre, onde os trabalhadores que considerem ter condições laborais muito negativas podem sempre procurar alternativas mais atrativas).

Sabemos que os direitos (incluindo os Constitucionais) nem sempre são garantidos aos cidadãos, veja-se o direito à habitação, por exemplo, mas o Estado e os partidos políticos deveriam pugnar por provê-los, e sabendo a relevância fundamental da saúde, educação, justiça e transportes públicos, uma moderação do recurso ao expediente da greve seria uma decisão sensata e que acredito seria bem aceite pela maioria da população.

Se a greve é um direito, a saúde, educação e o transporte públicos também o são, e quando estes últimos esbarram frequente e reiteradamente no primeiro, o Estado deveria regular o direito à greve, sob pena de pôr em causa os demais.