Estávamos prestes a assistir ao início da Jornada Mundial da Juventude e intensificavam-se os esforços de alguns ilustres liberais em repudiar a ideia de o Estado português ser um interveniente activo na organização deste evento. A argumentação era diversificada. Começaram por reprovar a participação de um Estado laico num evento religioso, ignorando que a maioria da população portuguesa professa a religião católica e que, numa democracia, o papel do Estado deve ser sustentado na vontade da maioria. De forma legítima e responsável, manifestavam preocupação, não só com a utilidade de o Estado co-financiar este evento, como advertiam para a necessidade de controlar a despesa pública nesta organização. Talvez aqui as suas vozes tenham, de alguma forma, contribuído para servir este propósito.
Começava a JMJ e os indícios pareciam demonstrar que o retorno financeiro esperado com a organização deste evento suplantava em larga escala o investimento público. Numa atitude de pertinácia pueril, tudo servia para descredibilizar a notória sustentabilidade financeira para o estado como co-organizador deste acontecimento. A argumentação utilizada chegava a ser tão excêntrica que só a reconhecida e merecida notoriedade irreverente dos seus autores os protegia do risco do descrédito público. Mas sobre isto prefiro remeter a explicação dos factos para os tecnicamente mais avalizados, que seguramente nos irão apresentar os resultados financeiros com a melhor das clarividências.
Prefiro falar do que realmente importa. A mensagem das JMJ extravasa a dimensão do religioso, atinge a pessoa humana no seu âmago, de um modo ecléctico e independente da sua cultura. É impossível ficar indiferente a esta manifestação de humanismo, de pluralidade, de tolerância, de alegria e de esperança.
Mas não só. O legado que Jorge Mário Bergoglio nos deixou nestas jornadas foi mais do que isso. O inconformismo temerário com que incita os jovens a agir e a participar nas decisões do seu próprio futuro, a imagem de um homem, idoso no aspecto mas de uma vitalidade impressionante, a desafiar e a assumir as suas limitações e, sobretudo, a veemência com que convoca os eclesiásticos e os católicos a serem inclusivos e a aceitarem “todos, todos, todos”, com a sua identidade, as suas limitações e as suas inerentes imperfeições, são um autêntico boost para todos os portugueses, com efeito transversal à faixa etária, ao credo, à ideologia, à condição socioeconómica e à sua identidade.
Pergunto: este incitamento ao inconformismo, à temeridade, à inclusão, ao respeito pela liberdade individual de se ser “imperfeito”, à participação activa num futuro mais solidário, sem julgamentos de quem se considera de uma casta superior, não serão porventura causas com as quais os liberais se identificam?
O liberalismo é, e tem de ser, muito mais do que a redução da carga fiscal ou a liberdade individual. Menosprezar a importância que as JMJ, e o seu legado, assumem na valorização da pessoa humana, com a sua “individualidade imperfeita”, refugiando-se apenas na prosperidade financeira e económica de Portugal, é um erro que compromete este mesmo desígnio, induz nos portugueses uma percepção errónea do que o projecto liberal representa e, mais do que isso, deita por terra as conquistas que os liberais têm conseguido na construção de um Portugal mais inclusivo e socialmente justo.
As pontes são sempre mais úteis que os muros. Não perceber que as JMJ não são mais do que a mais pura manifestação de um liberalismo assente em valores como a solidariedade, a fraternidade, a inclusão, a liberdade, o inconformismo e a irreverência, é assumir uma postura identitária e dogmática. Numa democracia, é salutar remar contra a corrente, faz parte. Mas não aproveitar a mensagem destas ou de outras jornadas similares, só porque têm um cariz religioso, pode ser, como foi, percepcionado, pelos crentes e pelos agnósticos como um “orgulhosamente sós”, com todo o seu efeito pernicioso sobre a imagem do liberalismo em Portugal.
Sem perder a sua identidade e sendo fiel às suas convicções, o liberalismo pode aproveitar a energia desta juventude, desanimada e frustrada, mas irreverente e temerária, para os recrutar para um projecto fracturante, inclusivo, ambicioso, assente em valores liberais que na sua essência são similares aos que uniram um milhão e quinhentos mil jovens, num evento cuja organização dignificou, e muito, o nome de Portugal.