Recordar e homenagear José Cutileiro é, para mim, um raro e comovente privilégio. Recordo-o com sentida saudade. E com a admiração de sempre.

Trata-se de uma admiração profunda. Pela sua disposição intelectual, tão rara entre nós: uma disposição céptica, sem ser niilista; uma disposição liberal, sem ser anti-social; uma disposição europeísta e, simultâneamente, atlantista. Fundamentalmente, uma oposição a todas as formas de autoritarismo, sejam elas de direita ou de esquerda. Em suma, uma firme opção pela elegante — e rara — moderação liberal que distingue o Ocidente.

A disposição intelectual que me habituei a descobrir, e a cultivar, em José Cutileiro foi — e receio que possa continuar a ser — extremamente rara entre nós. No plano mais directamente político, creio que Mário Soares e Sá Carneiro — a quem literalmente devemos a nossa democracia — terão expressado essa profunda disposição liberal, moderada e profundamente anti-autoritária.

No plano intelectual e, em grande parte, pessoal, a memória de José Cutileiro está para mim indissociavelmente ligada a nossos comuns amigos Victor Cunha Rego e Bernardino Gomes — ambos, tal como José Cutileiro, opositores à ditadura, saloia e colectivista, de Salazar; e ambos amigos, na ‘eterna ala centrista’, de Mário Soares. Mais tarde, observei — com muito agrado, mas sem surpresa — a proximidade entre José Cutileiro e José Manuel Durão Barroso, com quem partilhámos um muito agradavelmente interminável jantar em minha casa, no Monte Estoril.

Mas, em bom rigor, antes mesmo de Victor Cunha Rego, de Bernardino Gomes e de José Manuel Durão Barroso, a memória de José Cutileiro está para mim indissociavelmente ligada a Yvonne Felman Cunha Rego.

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Tive o privilégio de conhecer pela primeira vez José Cutileiro num inesperado jantar na encantadora casa de Yvonne no Príncipe Real, algures no início da década de 1990. Eu estava nessa altura a fazer o doutoramento em Oxford — e terei vindo a Lisboa nas férias de Natal ou da Páscoa. Foi um jantar absolutamente inesquecível.

José Cutileiro simplesmente exprimia com total naturalidade as virtudes que eu estava a aprender a admirar em Oxford — e que me estavam a ser ensinadas por Karl Popper e Ralf Dahrendorf: sentido de humor, em primeiro lugar sobre si próprio; total ausência de presunção pessoal ou/e de fanatismo sobre opiniões particulares; um certo snobismo gentil relativamente aos regimes e culturas políticas pomposas, centralistas e autoritárias, do terceiro-mundo (incluindo, subtilmente, algumas culturas políticas centralistas da Europa continental).

Esse foi e permanece, para mim, um jantar inesquecível. A partir daí, mantive um contacto esporádico, mas intenso, com José Cutileiro. Partilhávamos regularmente por email as nossas crónicas semanais na imprensa ou nos blogues — sobretudo, mais tarde, os seus excelentes “Bloco-Notas” semanais no blogue “Retrovisor” de Vera Futscher Pereira. Encontrávamo-nos episodicamente em muito divertidos almoços ou jantares — em regra no Estoril, e, em regra também, no incontornável Restaurante Cimas/English Bar do Monte Estoril, ou no Estoril Golf Club.

Uma palavra acerca do Estoril talvez seja apropriada, em recordação de José Cutileiro. Nós certamente gostávamos de nos encontrar no Estoril. Os nossos comuns amigos Victor Cunha Rego e Bernardino Gomes também tinham escolhido viver no Estoril. Era um mistério docemente partilhado entre nós — e sobre o qual raramente falávamos explicitamente.

Foi Victor Cunha Rego quem uma vez me falou longamente sobre o mistério do Estoril. Depois de um jantar em minha casa (na época, no Estoril, antes da mudança para o Monte Estoril), Victor encostou-se suavemente sobre a lareira — e dissertou: que o Estoril tinha a brandura de costumes que acolhera os exilados da II Guerra perseguidos pelo nazismo, com destaque para os judeus em fuga para a América; que tinha sido o quartel-general dos aliados anglo-americanos, sediados no Estoril Palace Hotel; que tinha sido o lar de origem do James Bond de Ian Fleming, também no Estoril Palace Hotel; que respirava o sentido de equilíbrio e moderação de uma ´burguesia’ independente do ‘estado’ (sempre em minúsculas, na língua inglesa, diferentemente da francesa) — e suficientemente antiga, bem como apenas moderadamente abastada, para olhar com displicência o novo-riquismo de alguns novos-ricos que por vezes apareciam no Estoril, e falavam alto em lugares públicos.

Anos mais tarde, em Oxford, fiquei estupefacto quando ouvi de Isaiah Berlin uma muito similar referência muito afectuosa ao Estoril. Eu tinha passado uma bela manhã no escritório de sua casa em Headington, junto a Oxford. Ele falara-me toda a manhã da rara elegância tolerante da cultura política britânica — que acolhera a sua família, em fuga do barbarismo comunista soviético. No final desta inesquecível conversa, levou-me para Oxford no seu carro (um belo Jaguar, XJS, de cor “British Racing Green” — eu agora também tenho alegremente um velho Jaguar parecido, chama-se ‘Sovereign’, mas é apenas “Royal Blue”).

Durante a curta viagem de Headington para Oxford, Isaiah perguntou-me onde é que eu morava em Portugal. Eu respondi que morava numa pequena aldeia perto de Lisboa, que ele provavelmente não conhecia. “E qual é o nome dessa aldeia”, insistiu ele. Eu respondi modestamente: “Estoril”. Isaiah quase deu um salto no carro: “Estoril? Estoril? Of course I know Estoril! Is the Palace Hotel still there? And is the Head Porter of the Palace Hotel still Mr. Pinto?” Foi a minha vez de quase dar um salto no carro, e de ripostar:  “Why on earth do you know the name of the Head Porter of the Estoril Palace Hotel?” Isaiah tranquilamente respondeu: “Because I was there twice during the War and Mr Pinto was a very decent chap who helped many Jews to escape to America.”

Anos mais tarde, partilhei com José Cutileiro — num animado jantar no Restaurante Cimas/English Bar, com sua encantadora mulher, Myriam Sochacki, — estas reflexões Estorilenses do nosso comum amigo Victor Cunha Rego e de Isaiah Berlin ( que José Cutileiro obviamente também conhecera em Oxford). Saboreando com vagar um agradável Porto, José Cutileiro avisou-me sabiamente:

“O Victor tinha toda a razão. E Isaiah também. Não devemos, por isso, publicitar excessivamente as virtudes moderadas do Estoril. Se estas nossas queridas virtudes moderadas ficassem muito na moda, correríamos o sério risco de deixarem de ser moderadas.”

Este era o José Cutileiro de sempre e de cada dia. Eternas saudades ele nos deixou!