A esquerda gostaria que as empresas (pelo menos, as ‘estratégicas’) estivessem nas mãos do Estado. O problema é que o Estado não tem mãos, quem tem mãos são os indivíduos. A esquerda fala como se o governo pudesse ser incompetente ou corrupto, mas o Estado, vá-se lá saber porquê, estivesse naturalmente investido de nobreza e dignidade e pairasse sempre acima das fraquezas e dos vícios humanos. Infelizmente, o Estado não é nada disso. O Estado são pessoas, muitas vezes escolhidas e nomeadas pelo tal governo ‘incompetente e corrupto’. — José Carlos Alexandre.

Um Estado grande não é sinónimo de um Estado forte. Na verdade, em Portugal, o contrário parece ser verdade. Quanto mais o Estado crescia, nos anos 80 e 90, mais capturado por interesses particulares ficava. E, infelizmente, a Caixa Geral de Depósitos, o maior banco nacional, é uma ilustração quase perfeita de alguns dos principais pecados da economia portuguesa. Também por isso é um símbolo do paradigma económico que tem de ser mudado. Por isso é tão importante a discussão em torno do seu passado (vulgo auditorias e comissões de inquérito) e em torno do seu futuro (modelo de governação).

Durante várias décadas, o modelo de crescimento português assentou no sector da construção e imobiliário. Esse modelo foi estimulado pelos sucessivos governos e financiado pelos bancos. Quando vemos a lista dos principais créditos da CGD é impossível não ver lá plasmada esta estratégia. Até auto-estradas encontramos nessa lista.

As relações ambíguas entre entidades reguladoras e reguladas são outro dos sintomas da captura do Estado por interesses privados. Como Nuno Garoupa em tempos descreveu, há uma porta giratória por onde se passa de um estatuto para o outro. Mais uma vez, a Caixa ilustra isto na perfeição. E, como o nome indica, a porta giratória funciona para os dois lados. Por exemplo, António de Sousa foi governador do Banco de Portugal até Fevereiro do ano 2000, tendo-se tornado presidente do Conselho de Administração da Caixa Geral de Depósitos em Março do mesmo ano. E, em sentido contrário, temos o actual governador do Banco de Portugal, Carlos Costa, que foi do Banco Europeu de Investimento para o Banco de Portugal, mas que antes tinha passado pela Caixa. Às vezes a porta giratória dá mesmo a volta completa: é o caso de José de Matos, que antes de ser presidente da Caixa Geral de Depósitos, 2011-2016, foi vice-governador do Banco de Portugal e que para lá regressou, agora que o seu mandato acabou. Estes são exemplos, mas mais poderiam ser dados, como se pode ler no artigo de Cristina Ferreira no Público 21 de Junho.

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(Não devia ser necessário dizer isto, mas, infelizmente, é: isto que refiro são constatações de facto que não implicam qualquer julgamento de carácter pessoal; estou a criticar o sistema e não as pessoas.)

A Caixa também simboliza a forma como o Estado se imiscui indevidamente em negócios privados e os tenta dominar. A forma como tomou de assalto o Banco Comercial Português é apenas um exemplo. E, claro, também simboliza a promiscuidade entre poder político e empresas. Basta ver a quantidade de gente com cartão do PSD-PS-CDS que passou pela administração da Caixa. Fica-se com a ideia de que ser-se independente é um critério de exclusão, talvez por falta de competências naquilo a que se chama soft skills.

Já por diversas vezes insisti nesta coluna que para encontrarmos as causas endógenas da estagnação da economia portuguesa temos de perceber a teia de interesses que se desenvolveu nos anos 80 e 90. A ruptura do Estado com o Grupo Espírito Santo foi um passo decisivo que demos para nos libertar dessa rede. Uma auditoria profunda à Caixa, que ficou por fazer nos anos da troika, em todas as suas vertentes — política (comissão de inquérito), financeira (uma auditoria externa, eventualmente pelo BCE) e forense (como a que o Banco de Portugal ordenou a respeito do BES) — permitiria perceber melhor esta teia. Não me refiro aos grandes devedores de dezenas ou centenas de milhares de euros. Nesses casos, não são precisas auditorias, todos adivinhamos o que está em causa. Estou antes a pensar nas chefias intermédias e regionais da Caixa. Porque se o Conselho de Administração é o que é, não há grandes motivos para pensar que as chefias locais sejam impermeáveis aos caciques locais.

Como disse Fernando Alexandre, anteontem no programa Comissão Executiva, no Económico TV, só sabendo exactamente como a Caixa chegou ao estado em que está, será possível definir um modelo de governança adequado que impeça os mesmos disparates. Reduzir os problemas da Caixa ao tempo de Sócrates, como fez João Marques de Almeida aqui no Observador, é a certeza de que nada mudou. Este é um teste ao nosso regime. Veremos se ainda tem dentro de si as forças de regeneração necessárias.