Escolhi viver e trabalhar em Lisboa, cidade que amo. Aprendi a amá-la. Quando saí do Lobito inesperadamente e vim para Portugal, foi Lisboa que me recebeu.
Vivi então numa rua de dois sentidos e muito movimento, onde as crianças não brincavam, uma rua suja e ruidosa por comparação com a rua de casario baixo de frente para o mar em que tinha vivido até aí.
Foi em Lisboa que entrei para a primária. Uma escola modelo, com lanche e aulas de natação na piscina do Técnico. A minha avó levava-me à escola, a pé. Um dia após outro, passo a passo, casa, escola, Técnico, mais o privilégio de ter acesso ao Coliseu onde podia ver tudo até o que não queria e aos meus olhos infantis era uma seca, fui-me fazendo pessoa nesta cidade.
Cresci a andar de metro para ir ao dentista ou às consultas no hospital, a descer as escadas para me sentar, sozinha, nas matinées do cinema Star a ver os filmes de Louis de Funès ou as aventuras de Astérix; a sentir aquela leve vertigem no segundo andar do autocarro, daqueles autocarros verdes, na subida da Rua da Madalena sem saber se conseguíamos chegar ao fim: algumas vezes, o autocarro deitava fumo e parava, obrigando-nos a subir o resto a pé… eu gostava tanto.
Há, na cidade, esta facilidade de tudo se ligar: o rio à colina, a praça à alameda; o hospital à universidade; o aeroporto ao banco; o metro ao emprego. A cidade liga-se ao mundo pelas pessoas que nela vivem e circulam. Há lima kaffir à venda no Martim Moniz. E no Mercado de Arroios mulheres sírias cozinham khubz à nossa frente.
Escolhi viver e trabalhar em Lisboa. O custo desta escolha materializa-se em tudo o que deixei de fazer e ter para poder continuar a viver aqui. O preço especulativo do metro quadrado na freguesia em que vivo e trabalho, pago-o com cada viagem que já não posso fazer. Pago em cansaço o silêncio que deixei de ter quando Lisboa se transformou num gigantesco estaleiro de obra. Como pago os produtos essenciais mais caros e alimento a EMEL a pão-de-ló.
Há uns anos vivia no Príncipe Real. Gente rua acima, rua abaixo toda a noite, trolleys às quatro da manhã, risos excitados e escorregadelas na calçada suja de vómito e de garrafas partidas, do lixo abandonado por baixo das janelas. Mudei de casa. Procurar um sítio limpo, em Lisboa, sai caro.
Gosto da ideia de mobilidade que Lisboa tenta implantar. Há muitos anos que ando de bicicleta. Atravessar a cidade a pé, de trotineta, ou de mota eléctrica, dá-me prazer. Mas não sem consequências: sem ser aos fins-de-semana, pausas ainda respeitadas pelo tráfego, o ar que se sente em cima de uma bicicleta é sujo, cheira mal, mancha os colarinhos brancos; a ciclovia que sai da rotunda do Marquês para a Av. da Liberdade, e não é das piores, é um desenho de bicicleta no asfalto já muito degradado pelas raízes das árvores – é difícil chegar aos Restauradores sem os maxilares baterem um no outro ou o cérebro pedir descanso das pancadas. Talvez por isso os largos passeios da Avenida sirvam de via preferencial aos adeptos da mobilidade “verde”, onde podem acelerar nas trotinetas e intimidar quem por lá passeia. Esta mobilidade, acessível só a alguns, não é verde, é vermelha. A outra mobilidade, a de que tem de entrar e circular diariamente em Lisboa, essa, de tão deficiente nem sequer faz cartazes.
Lisboa poderia ter aprendido com Veneza. Barcelona. Paris. Ter regulado melhor. A mobilidade verde e o alojamento local. O ruído. Os transportes. A limpeza e a habitação. Não se ter deixado ficar refém de fundos imobiliários especulativos e hostis para quem nela vive e trabalha.
É nossa a responsabilidade de fazermos a cidade que queremos ter. Essa responsabilidade começa nas autárquicas.