Como já é tradição estival, aproveito o privilégio de ter um espaço público para escrever para deixar algumas sugestões de leitura para as férias. Como sempre, esta é uma lista completamente subjetiva e baseada meramente no prazer da leitura, numa mistura entre novidades e edições mais antigas.
1 Cristo Parou em Emboli de Carlo Levi. Em boa hora, nos últimos anos, a edição de literatura italiana do pós-guerra explodiu em Portugal, graças, em parte, ao excelente trabalho que a coleção Livros do Brasil tem vindo a realizar. A esmagadora maioria dos livros são, na verdade, reedições ou novas traduções de clássicos que haviam já sido editados em Portugal nos anos 60 e 70, mas que, devido às idiossincrasias do nosso mercado editorial, em que o fundo de catálogo é descuidado, estavam indisponíveis. Este Cristo Parou em Emboli de Carlo Levi é um dos livros mais interessantes que li na primeira metade deste ano. Baseado em factos reais, Carlo Levi, médico judeu nascido em Turim, conta a sua experiência de exílio forçado no sul de Itália. A ação do livro passa-se em 1935-36, anos de chumbo do fascismo que Levi passou em duas aldeias perdidas na região de Lucânia. A descrição da miséria, dos pequenos tiranos locais – como o chefe da polícia ou o velho e incompetente médico local que receia que Levi tome o seu lugar com conselhos de medicina moderna e consegue que este seja proibido de exercer – e, em grande parte, da chamada questão meridional italiana aparecem aqui descritos de forma exemplar.
2 Um Ocidente Sequestrado ou a Tragédia da Europa Central de Milan Kundera. Não faço parte da legião de admiradores de Kundera romancista, muito menos do seu título mais famoso. Será, certamente, defeito meu. Gosto muito de Kundera enquanto ensaísta e intelectual público que, ao longo das últimas décadas, depois de ter sido um feroz defensor do comunismo enquanto forma de libertação (no bas-fond da literatura Europeia diz-se que terá delatado outro escritor no início da década de 50), lutou contra a abjeção do regime Soviético depois de este ter terminado com a Primavera de Praga. Este livro tem origem num ensaio originalmente publicado na New York Review of Books, em 1984, no qual Kundera discorre sobre como a maior tragédia da Europa Central e de Leste não havia sido o Nazismo ou o Comunismo. Pelo contrário, o principal legado histórico do século XX havia sido a perceção criada no Ocidente de que os países da Europa Central eram “o outro” e não faziam parte da nossa comunidade imaginada. O ponto central da tese de Kundera é especialmente importante em Portugal, onde a lonjura geográfica faz com que países como a República Checa, Hungria, Polónia ou a Ucrânia sejam vistos como o Leste ou a periferia na Europa. Na verdade, como Kundera mostra, e como a literatura anterior a 1945 demonstra, estes países são o centro vital da Europa e onde todos os movimentos aconteceram. A guerra da Ucrânia veio recolocar a questão da “pertença” deste país à Europa enquanto comunidade histórica e cultural, tornando este livrinho muito importante.
3 O Impostor de Javier Cercas. Se tivesse de escolher apenas um livro lido na primeira metade deste ano, este levaria, sem dúvida, o prémio. Depois de ter ido morar para Madrid no início do ano, tenho vindo a trabalhar incansavelmente para diminuir a minha enorme ignorância em literatura espanhola, da qual já me tinha apercebido, mas tendo sido demasiado preguiçoso para colmatar. Este livro é, ao mesmo tempo, brilhante e divertidíssimo, não apenas pelo talento evidente de Cercas, mas, principalmente, pelo personagem principal do livro: Enric Marcos. Quem é Enric Marcos? Essa é, talvez, a grande questão que perpassa todo o livro. Em traços gerais, Marcos é um impostor que, durante anos, ganhou vasta proeminência pública e política afirmando ter sido um dos poucos espanhóis presos pelos Nazis no campo de concentração de Mauthausen. Marcos tornou-se uma figura pública em Espanha, fazendo discursos, por exemplo, no Congresso, onde comoveu políticos até às lágrimas, contando aquilo que sofrera às mãos dos seus verdugos na Áustria. Quando se preparava para participar com Zapatero como representante espanhol nas comemorações do 60º aniversário da libertação do campo de concentração, na Áustria, foi desmascarado por um historiador. Apesar de ter sido, sem dúvida, a sua maior impostura, esta não foi a única. O livro de Javier Cercas cobre toda a vida de Enric Marcos, incluindo a sua ascensão a líder de uma das principais centrais sindicais na Espanha pós-Franquista baseado em credenciais anarquistas que, mais tarde, se revelariam falsas. Por todo o livro perpassam reflexões do autor sobre a moda política e intelectual da memória histórica, utilizada, na grande maioria das vezes, para efeitos políticos imediatos. Notável. O livro está, estranhamente, esgotado na distribuição comercial, apesar da edição da Assírio e Alvim ser apenas de 2015. Redes como a RELI ajudam os leitores a procurar pérolas como esta.
4 Beyond the Wall: East Germany, 1949-1990 de Katja Hoyer. A última geração que cresceu do outro lado da cortina de ferro e que, na grande maioria dos casos, eram, no máximo, pré-adolescentes em 1989, está a começar a escrever livros. Este livro é uma espécie de versão alemã, com menor patine intelectual, é certo, de Free, que Lea Ypi lançou o ano passado, perante gáudio e aplauso intelectual em toda a Europa, sobre o seu crescimento na Albânia de Hoxha. O livro de Hoyer tem três aspetos que o tornam muito interessante. Em primeiro lugar, o livro tem uma secção inicial sobre as origens históricas da elite que fundou o Partido Socialista Unificado da Alemanha, o partido único que comandou o país com mão de ferro até 1989. A maioria desta elite exilou-se em Moscovo durante os anos 20 e 30 fugindo do horror Nazi, criando, inclusive, uma Escola Alemã, onde os filhos dos exilados políticos eram socializados. Esta elite regressou à Alemanha em 1945-46 para criar o paraíso na terra, regresso esse que aconteceu para um país que, devido à guerra, havia sofrido enormes transformações sociais e políticas que o tornavam, de facto, incompreensível para o esquema mental dos exilados que haviam saído da Alemanha duas décadas antes. No fundo, a mesma tragédia mental de Álvaro Cunhal que, em 1975, não percebeu que o embrião de classe média nascida nos anos 60 em Portugal tornava o seu esquema mental, gizado em Rumo à Vitória, completamente obsoleto. Em segundo lugar, o livro de Hoyer conta-nos a vida na Alemanha de Leste para lá de Berlim, o que nos dá uma perspetiva única sobre a vida do cidadão comum em zonas do país que, na verdade, estavam muito menos expostas às tensões geopolíticas e ao contacto com o Ocidente. Por último, e aqui o encontro com Ypi é notável, o livro de Hoyer entra num saudosismo algo bacoco, apresentando o modelo económico e social do Leste não só como viável, mas, em muitos aspetos, superior, dando como exemplo disso os anos 70 em que o crescimento económico e o bem-estar social aumentaram imenso na Alemanha de Leste. Hoyer mostra estatísticas do número de televisões e frigoríficos que ultrapassou, em alguns anos, a Alemanha Ocidental. A Stasi e a opressão não passavam de um detalhe.