Com o momento de instabilidade institucional e política no panorama britânico em função da morte da Rainha Isabel II, da coroação do polémico Carlos III e de uma renovação com tom de golpe palaciano na liderança do Partido Conservador e do Gabinete, a governação de Liz Truss apresentava-se, de antemão, sob fogo. O corte errático, na sua dimensão e direção, de impostos como expressão de irresponsabilidade fiscal, a subsequente resposta dos mercados a uma inexplicável falta de informação em termos de projeções económicas, e a necessidade de intervenção do Bank of England por forma a garantir liquidez aos fundos de pensão são, para todos os efeitos, um cruzamento moderno do Rubicão. Num governo sem a expressão de legitimidade mais importante, Liz Truss terá de resignar ao cargo num futuro próximo, com um pedido de snap General Election a implicar uma devolução do poder de decisão sobre o curso político futuro do Estado aos seus eleitores. Insistir no atual estado das coisas é promover um permanente estado de desgaste das instituições e do mecanismo de sobreposição que sempre pautaram a História Constitucional inglesa. Urge coragem política para assumir a derrota e proceder a uma reconstrução dos tories enquanto partido histórico do sistema político britânico.
Liz Truss é uma figura peculiar no contexto político britânico. Como figura central do Gabinete anterior de Boris Johnson, na pasta dos Negócios Estrangeiros, a atual primeira-ministra parecia apresentar-se como uma solução competitiva para tomar os desígnios políticos futuros dos conservadores e do poder executivo, com a conjugação de um passado técnico e empresarial com uma componente política distinta, e mais versátil, do seu principal opositor Rishi Sunak – como personagem eminentemente mais clássica e mais ligada à dimensão económico-financeira inerente à Chancelaria de Exchequer.
Mas a vitória de Liz Truss, não acompanhada por uma necessária decisão de legitimação do seu governo nas urnas após o fim de uma nova «mad phase» de Boris Johnson, tingiu um executivo ferido de morte antes do seu próprio começo e cuja única fonte de pseudo-legitimidade seria, então, a apresentação de um conjunto de indicadores francamente positivos para os britânicos em matérias cruciais no contexto do seu sentido de voto – como a economia, a saúde ou, neste contexto concreto e em proximidade com o trabalho de Truss, a Política Externa e os Negócios Estrangeiros. Truss falhou neste e noutros domínios. Falhou, de antemão e na condição de Foreign Secretary, na prossecução de uma linha de política externa de franca retração do Reino Unido, enquanto agente atlântico de liderança na Europa, no plano internacional e, nomeadamente, em teatros de operações cruciais, como a Síria, e em relação a aliados cruciais, como a Commonwealth. Falhou, na prossecução de uma política económica desnorteada e sem orientação ideológica coerente e estável, num pêndulo oscilador entre um capitalismo de Estado excessivamente central a um eleitorado, e a um partido, com natural apreço pelo livre-mercado e pela economia, relativamente social, de mercado projetada pelos seus antecessores, e uma política fiscal de cortes tributários incomensuráveis, irresponsáveis e indirecionados numa situação-limite como a atual, que caracteriza uma navegação à vista – à semelhança da portuguesa e nas palavras de Rui Rio em relação ao Orçamento de Estado para 2022, «errada e errática». Falhou, num combate incoerente à inflação que colocou o problema sob a responsabilidade da tecnocracia do Bank of England, exigindo-lhe uma intervenção sem precedentes para salvar a libra de uma furiosa corrida à moeda e para salvar a capitalização pensionista promovida, de forma geralmente correta e sensata, pelo sistema britânico de pensões e que se irá traduzir em duas dimensões trágicas para o Reino Unido e para os britânicos – mais inflação e menos libra.
Para um cruzamento metafórico do Rubicão como o protagonizado por Truss e pelo seu executivo, a única solução viável terá de, naturalmente, passar por um abandono do executivo que conduza o Estado a um processo eleitoral que devolva aos eleitores a hipótese de referendo das anteriores e da atual liderança do Partido Conservador (desde 2010, de forma intermitente) e uma contestação do poder legislativo, e executivo, entre os projetos de um novo líder conservador e do atual líder do Labour, Keir Starmer.
As atuais sondagens são atestado da forte insatisfação da população britânica com o projeto empreendido pelo centro-direita para o Reino Unido, e qualquer adiamento do processo eleitoral até ao projetado, em 2024, implicará um risco de subversão da principal dinâmica de competição do sistema eleitoral britânico, entre conservadores e trabalhistas, e, por inerência, um risco para a natureza do bom funcionamento institucional, da previsibilidade do bipartidarismo e da manutenção de uma dinâmica sistémica competitiva num futuro a curto e médio prazo.
Mais do que o ganho partidário, os conservadores são impelidos, na contemporaneidade, a refletir sobre os frutos de uma governação de duração quase sem precedentes no cômputo de países desenvolvidos de matriz demo-liberal, exigindo-se um sentido de responsabilidade que coloque a estabilidade acima da política competitiva e a manutenção da sobreposição institucional acima do jogo partidário. Num momento instável de coroação de um monarca francamente menos consensual do que o seu antecessor, impera-se, para a restante Europa de cariz continental, a aversão a uma crise constitucional de consequências imprevisíveis e com um impacto económico e bancário de relevo. Liz Truss e o seu Gabinete dispõem da bala de prata em cima da sua secretária a tempo inteiro. Tenham a coragem de a disparar.