1. Visto de Londres é ainda, se possível, mais perplexizante: na rua é (quase) como se tudo ocorresse noutro país, (sendo certo que se depara com casas e lojas para vender, ou comércio a fechar). E nas instâncias políticas é como se todas as saídas de emergência estivessem fechadas, com Bruxelas ao fundo. O naipe político que carrega ás costas com o Brexit, desavindo e hostil, só aparentemente está dividido ao meio. É bem mais complicado que isso, quem os ouça, ouve muitas vezes opiniões que diferem dentro do mesmo campo, que variam, oscilam, hesitam, avançam, recuam, numa obsessiva coreografia política que parece não ter fim. Quantos erros tiveram que ser cometidos para chegar a este aparatoso encalhe da Grã-Bretanha nela própria?
Apetece não lhes perdoar o trabalho que nos dão, o prejuízo que ninguém nos pagará, as trapalhadas de toda a sorte que nos afligirão individual e colectivamente em Portugal. Não é porém ( a vida esta cheia de “poréns”) senão este “nos” que nos obriga a “remain”: a ficar de nariz colado á montra desta “sad story” até ela acabar (?), de tal modo uma parte considerável do nosso futuro depende dela. Dos comportamentos e decisões dos seus extraordinários e oh quão irregulares diversos protagonistas, com o leve Cameron no front row — ainda se lembram que foi ele quem abriu esta pesada caixa de Pandora?
O ar está carregado de palavras que estão sempre a ir e a voltar sem sair do mesmo sítio e o país parece enrolado num fio que nunca será capaz de o “desatar” de vez da União Europeia. Enquanto (em vão?) se espera por bondades remetidas de Bruxelas, vão-se descendo degraus sem que ninguém possa dizer quando se chega ao fim da descida, ou se no fim da escada estará um limbo ou o inferno. Em qualquer caso, estará outra vida.
O diálogo política/comunicação é ininterrupto mas o desnorteio dos dias e o temor da concorrência, parecem por vezes influenciar a media, mesmo a séria, feita por formidáveis jornalistas. O Sunday Times, por exemplo, avisou-nos que estava tudo a postos para “ a evacuação da Rainha” em caso de hard Brexit mas a manchette iludia, era como se nuvens de aviões estivessem prestes a deixar cair bombas sobre o país. E no suplemento de viagens de outro jornal, na rubrica “amazing offers”, atrai-se o futuro viajante com uma “brexit cancellation guarantee”… Entrevistas, debates, depoimentos, sucedem-se num ritmo avassalador de alta qualidade, com boa informação, “debaters” para todos os gostos mas prestações políticas muito desiguais (os ministros dos Transportes e da Defesa, por exemplo, parecem ter endoidecido). E a pressa curiosa da procura matinal de jornais e écrans travestiza-se porém ao fim do dia na monotonia impaciente do “mais do mesmo”: pela enésima vez, o impasse. Sob a forma de mais uma nova negociação ou outra démarche. Ás vezes de uma mera nuance. É assim que aqui se vive: o fio não desata há tempo demais.
Peço desculpa de não ser mais concreta, quem esteja mais bem informado que eu discordará deste “tom”impreciso mas o comum dos mortais é “isto” que traz de Londres: um imenso pasmo, no contacto incrédulo com o “ao vivo” desta saga que se mantém diariamente tão activa sem chegar a lado nenhum.
2. Londres são muitas cidades numa só. Um poliedro efervescente que tudo acolhe, permite projecta. Longe, muito longe das sombras do Brexit, no museu Vitoria and Albert o ar não pesa. E há muito brilho. É a estreia da exposição de Dior (1905/57) envolta nessa inconfundível atmosfera que sempre traz a expectativa. Há gente nova, gente da moda, designers, rapazes de estranhos penteados, caprichado calçado e às vezes um brinco; raparigas sofisticadas, mulheres elegantes, senhoras de mais idade, cavalheiros pacientes. Em surdina e em diversas idiomas ciciam-se comentários maravilhados e na penumbra das salas por onde circula o sonho, trocam-se olhares emocionados e exclamações rendidas. Christian Dior não tem idade, e eis a mais poderosa assinatura dos génios, terem-se apropriado do tempo: qual daqueles vestidos não poderia ser usado agora mesmo, mais de um século depois? Uma história de ímpar talento: ninguém como ele apenas com uma tesoura ou uma agulha na mão, terá tocado de tão perto a graça, a leveza, a elegância. Um percursor que abriu caminho e depois influenciou quase tudo e quase todos até hoje, no só aparentemente fútil universo da moda. Seguimo-lo, galeria após galeria, através de épocas e datas sem que porém ele nunca vergue ao anúncio de fim.Ali não há rugas, nem bafio, há criatividade, (felizmente eterna e infelizmente intransmissível). O glamour desprende-se de paredes e vitrinas onde mudos manequins nos mergulham numa “reverie” que esvoaça pela realidade e o sonho, por entre um vestido longo, o corte de um casaco, uma cintura de vespa, o cair de drapeados, pregueados e plissados. Há adereços, jóias, flores, objectos pessoais, escritos, uma história de vida. Há alguns meses vi no Museu das Artes Decorativas em Paris, uma mostra dedicada a este mágico que agora o “Vitória and Albert” importou ou muito nela se inspirou. E se o “Dior” é obviamente o mesmo, preferi Paris: talvez pela fulgurante encenação do “belo”, pela “réverie” que me pareceu mais luminosa, talvez pelo lado mais espectacularmente envolvente com que os franceses mostraram o seu rei.
“In the worl of today , haute couture is one of the last repositories of the marvellous” escrevia Christian Dior em 1957, ano da sua morte. E nós que escreveríamos? Que maravilha do “worl of today” guardaríamos nalgum “repository” mesmo que… último ?
3. Cambridge com muito sol e um frio polar. Somos oito, entre pais, filhos e netos e é a pé que visitamos este “legado” de onde se projecta, intacto, imutável, palpável, um património cultural e civilizacional muito impressivo. Após ruidoso almoço em italiana cantina, metemo-nos de novo ao caminho, desta feita com uma guia, para uma visita também a pé. Sem pressa e abrindo os olhos para as paredes carregadas de tempo, as inscrições nos portais das casas, os brasões, balcões, estátuas, frontespícios, os verdes relvados que emolduram a cidade onde se acumula tanta História e de onde jorram tantas histórias; os diversos Colleges, e que melhor ex-libris desta civilização que estas mesmas instituições que somam séculos de portas abertas, e que agora temos a fortuna de conhecer ao vivo? O dédalo de ruas e ruelas, as bicicletas, a animação do domingo, as esplanadas com ingleses de tee-shirt , a pedra amarelada. O passado. A guia é um refinado produto made in Britan, poderia ter saído de uma página de Agatha Christie, o modo de entrançar os dedos enluvados, as expressões, o tom de voz, a subtileza cruzada de ironia, o traje, a contida, ligeira, impaciência quando o Tomás (dois anos e meio) ameaçava uma descontida, pesada impaciência. A dada altura informou-nos que o acesso aos belos relvados dos College estava reservado a “gatos e professores e interdito a cães e alunos”, coisa que nos pareceu mais impossível que possível mas com os ingleses…
Quando me atrevi porém a dizer ao resto da tribo que achara a guia algo excêntrica, o resto da tribo retorquiu que “bem se via que eu não vivia em Inglaterra”:
“As minhas professores são assim…”
4. Apesar da sua celebridade e reconhecimento recebidos ininterruptamente durante décadas por parte da esquerda internacional mais ortodoxa, espantou-me o eco aqui dado na media a um livro de Hobsbawm (1917/2012) e ao próprio. Obviamente que não está em causa (e quem seria eu para isso?) o fôlego ou o talento do historiador e as obras que deixou. O que nunca alcançarei é como em certos meios intelectuais e politicos ainda se mantém tão activa a recomendação de ideias que não provaram e ideais que mataram, como a História mostrou e o mundo sabe. E como houve — e há – na segunda década do século XXI, incansáveis promotores e actores tão continuadamente disponíveis para os promover e interpretar. Como ocorreu ate ao fim com este intelectual para quem continuou sempre a pesar muito uma ideologia desgraçada e pouco ou nada os seus comprovados devastadores efeitos. Como olharia intimamente ele, para eles?
Um dia, há muitos anos, encontrei Eric Hobsbawm num avião no Brasil (sim, é a terceira vez que aqui conto que encontro gente desta, mediática e reputada, em meios de transporte, que hei-de fazer se é verdade e vem a propósito?) e impressionei-me. Nas fotos costumava sorrir, naquele dia era um ser sombrio, carregado, quase zangado: o homem não parecia gostar do mundo nem dos humanos. Gostaria?
5. Sempre apreciei “pintores intímos”. Pintores como Piere Bonnard, o eleito, que agora vejo na Tate Modern , que nos destapam o seu quotidiano. Pintando-o com minúcia, gozo e tempo, atardando-se nesse quase prosaico veio de objectos que o percorrem, mesas, cadeiras, janelas abertas,espelhos, jarras, utensílios, quartos, esquinas, vistas. Á vezes figuras, homens, casais, silhuetas femininas; que transformam uma sala aberta para uma varanda num diálogo musical entre o interior e o exterior; que impregnam as suas telas da doce quietude de um canteiro de flores ou pelo contrário da tensão ansiosa que porventura os aflige nesse momento, projectada no vento agreste que corre sobre um pedaço de Mediterraneo. Pierre Bonnard pinta momentos em que nada acontece a não ser uma harmonia mesmo que ilusória, mas com que absolutamente maravilhoso uso da cor…Nunca compreenderei como se “atingem” aquelas tonalidades que parecem deslizar de umas para as outras, confundindo-se umas com as outras, falsamente suaves, violentamente fortes mas é melhor não ousar defini-las. Não conseguiria. Só consigo agradecê-las.
6. Michelangelo já está há muito agradecido pelo mundo. Agora puseram-lhe Bill Viola em frente aos seus desenhos, nas mesmas vastas salas da Royal Academy: é suposto que dialoguem no meio da maior e mais incómoda penumbra mas não sei se o fazem, não me pareceu. Quem muito percebe de arte escreveu a propósito num jornal londrino, que o italiano sai a ganhar ao dotado videasta (“Michelangelo chews up his co-exibitors”). Quem se admira? O que de modo nenhum significa que eu não sugira á curiosidade do leitor uma visita a Royal Academy, caso por lá passe: com as recusas também se aprende e cresce na arte. (E na vida, então…)
7. Marcelino é musica celestial. Há três anos que o bailarino e eu trocamos mensagens. Somos amabilíssimos um com o outro, bem educados e adultos. Um pouco cerimoniosos até, mas o encontro nunca tem lugar. Um dia que veio dançar a Lisboa, ao S. Carlos, Marcelino Sambé, magnifico bailarino português da Royal Opera House, prometeu-me visita com detalhe aos bastidores desta catedral, momento e pretexto para, quem sabe, haver reportagem sobre tão digna, histórica morada. Como a guerra de Tróia, a visita nunca teve lugar. Daqui a meses, haverá, estou certa, nova remessa de mensagens afáveis e amáveis e assim vamos vivendo com o nosso sempre “impossível” encontro ao meio. Que se passará com os deuses que não olham para nós?