Nosso Senhor Jesus Cristo nos acuda: pelos vistos, temos uma intrusa no templo sagrado do jornalismo. Esta semana, Maria João Avillez entrevistou Luís Montenegro durante o Jornal da Noite da SIC e as virgens ofendidas começaram imediatamente a clamar por socorro. Luís Filipe Simões, que segundo percebi é presidente do Sindicato dos Jornalistas, ficou algures entre a apoplexia e a reação vagal: “O primeiro-ministro diz de manhã que os jornalistas fazem perguntas encomendadas e à noite dá uma entrevista que as pessoas pensam que é feita por uma jornalista que viemos a saber que não tem carteira profissional de jornalista”. Depois do instinto de indignação veio a vontade de perseguição: “Os atos jornalísticos têm de ser feitos por jornalistas. Existe a figura da usurpação de funções”.
Estamos, portanto, assim: ao fazer perguntas ao primeiro-ministro, Maria João Avillez estava a cometer o crime de “usurpação de funções”. Tem graça porque Luís Filipe Simões nasceu em 1973. Quer isso dizer que, quando o presidente do Sindicato dos Jornalistas deu os primeiros berros na maternidade, já Maria João Avillez estava a fazer perguntas — e a fazer jornalismo. Tendo em conta esse inegável facto, a pessoa que transitoriamente lidera o sindicato da “classe” devia conhecer Maria João Avillez. Como, aparentemente, não a conhece, não me importo nada de os apresentar através deste texto.
Desde o 25 de Abril, Maria João Avillez entrevistou todos os políticos que alguma vez levantaram uma bandeirinha em Portugal. Para evitar transformar este artigo numa lista telefónica, basta falar nos três principais líderes partidários do começo da democracia. Francisco Sá Carneiro falou repetidamente e exaustivamente com Avillez, permitiu-lhe que o acompanhasse nos bastidores de campanhas, confiou-lhe informações, deu-lhe acesso. Já Mário Soares, fez mais. Além de tudo isto, ainda aceitou dar-lhe uma longuíssima entrevista biográfica que seria mais tarde publicada em três livros (e que foi agora reeditada em dois volumes — recomendo a todos, especialmente a Luís Filipe Simões, que comprem). E há Álvaro Cunhal. O líder do PCP recebeu Maria João Avillez para várias entrevistas entre 1976 e 2000. E não falaram apenas sobre política — Cunhal, que era reservado e desconfiado, aceitou conversar também sobre família, sobre comédia ou sobre televisão. Há um outro detalhe que junta Sá Carneiro, Soares e Cunhal: é que, além de terem dado inúmeras entrevistas a Maria João Avillez, todos eles, em algum momento, se incomodaram com ela. Ou seja: todos perceberam, sem que lhes fosse dada margem para confusões, que Maria João Avillez é jornalista, não é uma ativista nem é um pé de microfone.
Eu já disse isto no início do texto, mas vou repetir, para que não restem dúvidas: dei os exemplos de Sá Carneiro, de Soares e de Cunhal, mas, nos 51 anos de vida do presidente do Sindicato dos Jornalistas, Maria João Avillez fez perguntas a muito mais pessoas. E não apenas a personagens que se movem na “corte lisboeta”. Uma das suas últimas “cachas” foi conseguir entrevistar o Papa Francisco, que seguramente não se impressiona com apelidos nem com árvores genealógicas. Imagina-se o sobressalto que terá percorrido os salões do Vaticano esta semana ao descobrirem, com pasmo e horror, que Maria João Avillez não colocou o seu nome na sacrossanta Comissão da Carteira Profissional de Jornalista.
Estes dias foram de inveja e de raiva reprimida. Em certo sentido, olhando para o currículo do alvo da fúria deles, eu percebo: quem lhes dera. Mas valeu tudo. Maria João Avillez foi acusada de não ser jornalista, foi acusada de ter feito carreira apenas por pertencer à “corte” desde o berço — e foi ainda acusada, claro, de ser “de direita”. É uma crítica interessante porque, durante quinze longos anos, a “classe” não se importou de ter como presidente do sindicato um jornalista que hoje é deputado eleito pelo PCP.
Além de mostrar incoerência, esta crítica seletiva mostra ignorância. Conheço profissionalmente Maria João Avillez há muitos anos, quase 20. Trabalhamos agora juntos no Observador e, antes, trabalhámos juntos na revista Sábado. Em todo este tempo, nunca vi Maria João Avillez a trocar um juízo jornalístico por um cálculo político: escreveu sempre o que tinha a escrever e fez sempre as perguntas que tinha a fazer. Mas, lá está, não precisam de acreditar no que eu digo. Nestas longas décadas de trabalho e esforço, Maria João Avillez nunca se escondeu: o trabalho que fez, pela sua própria natureza, é público. As entrevistas estão gravadas, os artigos estão publicados, os livros estão editados. Agora, ao fim de mais de 50 anos, querem convencer-nos que Maria João Avillez não é uma jornalista, é apenas uma usurpadora. A mim, dá-me vontade de rir. Suspeito que a ela também.