As décadas que tenho dedicado à investigação permitem-me afirmar que ordem e liberdade são conceitos com os quais a esquerda e a direita, sobretudo nas respetivas dimensões radical e extrema, convivem de forma excludente. Uma realidade de que, a nível interno, o populismo socioeconómico do Bloco de Esquerda e do PCP e o populismo cultural ou identitário do Chega constituem exemplos. Na verdade, enquanto o populismo socioeconómico, em nome de uma pretensa solidariedade a tender para proletária, se considera o arauto da liberdade e se revela pouco recetivo à aceitação da ordem, que vê sempre imposta em nome de interesses capitalistas, o populismo identitário assume-se como a voz que clama pela colocação da ordem acima de tudo e, com demasiada frequência, considera a liberdade como um estorvo, ainda que a coloque no nome do partido.

Por isso o populismo socioeconómico se coloca ao lado da vítima, isentando-a de qualquer responsabilidade e atribuindo sempre a culpa ao capitalismo e aos seus agentes políticos. Daí que o populismo cultural acuse a liberdade de não passar de libertinagem que coloca em causa o interesse nacional, ou seja, dos verdadeiros cidadãos.

Esta díade interpretativa ficou bem patente nos discursos da quase totalidade dos representantes ou simpatizantes destes partidos relativamente ao que se passou no Martim Moniz, a exemplo do que se tinha verificado na leitura dos motins que se seguiram à morte de Odair Moniz nas zonas periféricas da capital. Porém, sobretudo no caso do Martim Moniz, a situação foi mais grave porque vozes habitualmente moderadas de esquerda também assumiram um discurso passível de servir os interesses partidários, mas pouco ajustado ao interesse nacional. Tudo porque, em nome de uma pretensa defesa da cidadania, não tiveram na devida conta a ameaça que a criminalidade organizada representa para a sociedade.

Voltando às minhas investigações, no mais recente livro, o décimo sétimo na nossa língua – A Europa numa Encruzilhada. Novos Movimentos Sociais: da Diversidade aos Desafios e Oportunidades – analisei não apenas a estrutura e o modus operandi dos 821 (oitocentos e vinte e um) grupos de crime organizado que operam na Europa, mas também os gangues de rua – masculinos, femininos e mistos – que estão ativos principalmente nos subúrbios das maiores cidades europeias. Uma situação crescentemente preocupante devido ao aumento do número de gangues e à diminuição da idade com que os jovens entram para esses grupos.

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Fingir que o que se passou tendo o bairro do Zambujal como epicentro nada tem a ver com a existência de gangues não é apenas ignorância. É uma manifestação de incúria que se encarregará de cobrar um preço elevado e que não deixará de colocar em causa a segurança de muitos daqueles que, na conjuntura atual, só têm olho clínico para detetarem vítimas. Até porque os gangues de rua funcionam como escola e fonte de recrutamento para os grupos e redes de crime organizado.

Da mesma forma, fingir que não existem em Portugal redes de tráfico humano e que recusar que os imigrantes clandestinos estão na base do aumento da criminalidade é tão contraproducente como aceitar acriticamente a falácia de que existe uma relação direta entre o aumento da imigração legal e a criminalidade.

Face ao exposto, querer que o Governo se demita da sua função de vigilância protetora de pessoas e bens é negar a essência do Estado que foi criado precisamente para assegurar o direito à vida e à propriedade.

Como é óbvio, não faltarão vozes à esquerda a reclamar que o que está em causa não é a atuação dos agentes de segurança, mas a forma que a sua atuação assume. Por outro lado, é certo que surgirão vozes à direita a condenar o Governo, acusando-o de tirar poder às forças de segurança, pois isso acarreta uma perda de autoridade.

Havendo casos em que estas situações acontecem, não parece aconselhável confundir a árvore com a floresta. O Estado de Direito exige responsabilidade ou, como o povo proverbia, tento na língua por parte de quem representa os cidadãos. Para não acicatar ódios e agravar fraturas sociais. Que, a curto prazo, se virarão contra a democracia.