O Reino Unido está numa encruzilhada. Theresa May, que conseguira o troféu do acordo para o Brexit com a UE, foi trucidada por um bando de fações que se digladiaram no parlamento a propósito das possíveis graduações daquilo que constitui o Brexit, num inumerável leque de possibilidades que vão desde uma saída a bater com a porta até uma saída em bicos de pés.

Ser ou não ser Brexit? Eis a questão que terá de ser respondida até 29 de março próximo e cuja definição arrastará consigo o destino de May. Será que lhe está destinada a má sorte política de moderados como Gorbatchov ou Marcello Caetano, ou, pelo contrário, a de Franklin Roosevelt, que conseguiu com o seu New Deal reerguer política e economicamente os EUA?

A derrota parlamentar do acordo do Brexit era esperada, mas não deixou de ser surpreendente. Racionalmente, a situação parecia insustentável para os radicais, tanto de um extremo como do outro do espectro político. Uma saída sem acordo – “Hard Brexit” – significaria a imposição de fronteiras físicas entre a Irlanda do Norte e a Irlanda, ou seja, o fim dos “Good Friday Agreements” e o regresso da guerra civil a Belfast (o recente atentado à bomba em Londonderry é um primeiro e preocupante sinal). Não sair – “No Brexit” – significaria não respeitar o referendo, o que para o Reino Unido tem um efeito quase equivalente a uma guerra civil. No meio disto tudo, não se pode ignorar o posicionamento dos escoceses, que no caso de um Hard Brexit provavelmente convocarão e ganharão um próximo referendo pela independência. Está em causa a integridade territorial do Reino Unido, tanto por via da Irlanda, como da Escócia. E os ingleses levam a sério a opinião dos territórios que constituem o Reino Unido. Um afastamento da Irlanda do Norte poderia ser o começo do fim do Reino Unido, mas uma saída da Escócia acabaria com a própria Grã-Bretanha.

A solução de May era, portanto, a única que conjugava o respeito pelo resultado do referendo sobre o Brexit com a integridade territorial do Reino Unido.

Certamente por isso, a moção de censura ao seu governo, que decorreu no dia seguinte ao chumbo do Brexit, não foi aprovada. O parlamento britânico ainda não está preparado para aprovar o Brexit, mas reconhece que tem de continuar a caminhar nesse sentido, tendo mandatado May para continuar esse trabalho.

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A verdade é que muito pouca gente se saiu bem dos dois debates parlamentares. Os defensores do Hard Brexit foram incapazes de provar as vantagens do “No Deal”, e o líder da oposição trabalhista Jeremy Corbin acabou ridicularizado na sua tentativa de capitalizar uma derrota do governo que todos sabiam ser devida à conjugação dos votos da oposição com os dos conservadores mais radicais do Hard Brexit, numa coligação oportunista de polos opostos. Corbin também não convenceu, ao defender um Brexit com a manutenção da União Aduaneira com a UE. A saída da União Aduaneira e da Livre Circulação de Pessoas foram reconhecidas implicitamente, ao longo do debate, como o “core” daquilo que deverá constituir o Brexit. No entanto, o pior de tudo foi a recusa de Corbyn em negociar com May o novo acordo para o Brexit a não ser que ela afastasse expressamente o “No Deal”. A argumentação do líder da oposição foi habilmente desmontada pela Primeira-Ministra, uma das poucas que mostrou clarividência e coesão de posições no debate: “to rule out No Deal” significaria duas opções: ou apoiar o acordo que ela própria propunha, ou revogar a invocação do art. 50º do Tratado UE, ou seja, ir contra o referendo. Encostou Corbyn à parede da sua própria argumentação, e salientou a incoerência entre a medida que ele propunha e o fim por ele desejado.

Theresa May parece, portanto, bem posicionada para “deliver” o tal acordo indispensável para a prossecução de um “smooth” relacionamento entre o Reino Unido e a UE. As circunstâncias conjugam-se para que os parlamentares britânicos acabem por acorrer ansiosos à solução que ela tão pacientemente formulou e negociou nos últimos dois anos. Mas só conseguirá a necessária aprovação parlamentar quando o seu projeto de acordo surgir claramente como a única tábua de salvação no oceano de formulações possíveis para o Brexit. E é só uma questão de tempo até que os deputados interiorizem o que está em causa, ajudados pela rápida aproximação do “deadline” fatídico do dia 29 de março, data fixada para ocorrer o Brexit. O tempo corre a favor de May, e Corbyn, na sua mente fervilhante, entendeu-o bem. Obrigar a Primeira Ministra a renunciar ao “No Deal” significava inverter a situação e pôr o tempo a correr a favor de Corbyn. O “deadline” é aquilo que fará os parlamentares carregarem no botão vermelho de emergência e gritarem “Mayday”. E esse será verdadeiramente o dia de May. Na realidade, se a integridade da UE foi posta em causa com o Brexit, também o foi a integridade do Reino Unido, e o acordo é a única solução para ambos.

“Os ingleses são bons no último reduto, e os portugueses no último minuto”, diz a sabedoria portuguesa, fruto de muitos séculos de relacionamento com os ingleses. Veremos se o ditado se confirma e se o nome de Theresa May ficará para a história como a renovadora política vitoriosa que se atreveu a dar o salto para o mundo desconhecido do Brexit, mas com os pés em terra do acordo com a UE.