Diz-me com quem andas e dir-te-ei quem és. Na sabedoria do folclore, o povo, em certas ocasiões, tem respostas contundentes a dúvidas corriqueiras; noutras, com a simplicidade de um adágio, faculta-nos uma estrutura básica para esclarecer temas mais elaborados. Façamos então esta pergunta: com quem andam as feministas? Com Medeia, a feiticeira do mito grego e protagonista da tragédia homónima de Eurípides.

A história conta-se num parágrafo. Seduzida por Jasão e por um projecto de poder, Medeia mata o irmão, desmembra-o, e, na fuga, espalha os restos mortais para que o pai, obrigado a recolhê-los, se atrase na perseguição aos amantes. Chegados a Iolcos, Medeia convence as filhas de Pélias a cozê-lo num caldeirão. Mais um crime, outra escapada, desta vez para Corinto, onde, após dez anos de vida conjugal e dois filhos, Jasão abandona a mulher para casar-se com Glauce. É então que, in media res, começa a tragédia, resumida assim por Aristófanes de Bizâncio: «Medeia, devido ao seu ódio por Jasão, pelo facto de aquele ter desposado a filha de Creonte, matou Glauce e Creonte e os próprios filhos, e separou-se de Jasão para ir viver com Egeu.»

O mito de Medeia descreve uma das mais vertiginosas matanças da história da literatura, e culmina, na versão de Eurípides, com a atrocidade suprema: o assassinato dos próprios filhos, por despeito e vingança. O móbil é claríssimo e o carácter irascível e dissimulado da protagonista está explícito no texto, desde a entrada da Ama («ela é terrível, e quem a desafiar como inimiga não alcançará facilmente a vitória») até ao diálogo final, terrífico, com Jasão. Os remorsos, se chegam a despontar, são efémeros: quando Jasão presume que Medeia também sofre «da tortura e participa da desgraça», esta responde que «a dor se esvai, desde que não podes rir-te de mim».

Calculista e implacável, Medeia tem um lugar de destaque na galeria dos grandes vilões da literatura, ao lado de Iago, de Mefistófeles e do Juiz Holden, personagens complexas, fascinantes até, mas que não deixam dúvidas sobre a seus desígnios, por mais que a exegese evite o maniqueísmo. No linguajar hodierno, Medeia seria uma «psicopata», uma «assassina em série». Na sensibilidade dos nossos dias – ou naquela que pretendem impor-nos –, não só consegue escapar a qualquer juízo definitivo (o que não é necessariamente mau num contexto literário), como é elevada a mártir e ícone do feminismo.

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O namoro das feministas com a feiticeira de Cólquida remonta às origens do movimento: o primeiro monólogo de Medeia era cantado pelas sufragistas inglesas no final do século XIX. Admitimos que a citação estivesse descontextualizada e que as sufragistas não pretendessem celebrar uma infanticida. Não queremos ser sentenciosos como as feministas radicais e conhecemos as injustiças dos julgamentos fora do tempo. Já as diligências académicas e artísticas para limpar a imagem de Medeia e atribuir a culpa do infanticídio a Jasão nos parecem menos controversas. E não nos referimos à corrente que atribui à Medeia euripidiana um espírito heróico, disputada por muitos helenistas, mas que tenta fundamentar-se na proximidade deste com outros textos gregos. A leitura feminista, pelo contrário, distorce o enredo, omite passagens e forja motivações para salientar os traços feministas da história e reescrevê-la como se de um manifesto dos direitos das mulheres se tratasse.

Os exemplos são muitos, e basta referir, por exemplo, a tradução para francês de Marie Cardinali, de 1987, que introduz elementos ausentes do texto original para passar a mensagem feminista; a versão de Gloria Albee (1975), segundo a qual Medeia não mata o irmão nem os filhos; as adaptações de Tony Harrison (1986) e Brendan Kennely (1991), que, sem omitir os crimes, manipulam a audiência e recentram a tragédia num conflito de sexos. Ultimamente, Suzie Miller (2015) levou aos palcos londrinos uma versão que, mais uma vez, aligeira a responsabilidade da feiticeira; e em 2017, Peter Konwitschny encenou uma adaptação da ópera de Cherubini na qual Medeia é uma refugiada, maltratada e violada, a quem é negado asilo. Nestas variantes, Medeia não é um monstro; ou, se o é, foi o patriarcado quem o criou. À luz da leitura feminista, Medeia é inimputável.

Diga-se, em defesa das exegeses alternativas do mito, que uma grande personagem literária, seja qual for o seu código moral, exerce um fascínio inexorável sobre sucessivas gerações de leitores. Ninguém fica indiferente ao mistério de Holden ou à ambivalência de Ahab. Nesse sentido, qualquer interpretação da tragédia de Eurípides é bem-vinda. Os clássicos estão aí para serem lidos, relidos, treslidos, interpretados e criticados. Porém, a política não se dá bem com a recensão literária: uma leitura feminista de Medeia diz-nos muito sobre o feminismo e nada sobre Eurípides. E o que nos ensina sobre o feminismo não é agradável.

Verdade seja dita, não é a literatura que move ou comove o feminismo, até porque, noutros casos, as feministas não se coíbem de apelar à censura de obras literárias. Os livros são apenas o campo de ensaio para um programa de manipulação da opinião pública e imposição de normas comportamentais. Medeia mata os filhos porque quis protegê-los ou porque foi levada ao limite pelo patriarcado, diz a cartilha. Da ficção à reconstrução da realidade vai um passo. A desresponsabilização de Medeia e de outras infanticidas ficcionais (a Gretchen de Goethe, por exemplo) prolonga-se na relativização de qualquer barbaridade cometida por mulheres no âmbito de disputas familiares. Um crime perpetrado por uma mulher torna-se então digno de compreensão, de explicação, ao passo que, numa situação de conflito conjugal, os homens são sempre culpados. Os homens são culpados até de se comportar como tal: o termo «masculinidade tóxica», cada vez mais em voga, foi cunhado para cobrir de vergonha as condutas varonis mais consuetudinárias. E para as mulheres que não alinhem nesta batalha demencial, estão também reservados epítetos pouco simpáticos.

A segregação é o corolário lógico da guerrilha feminista. Ora, a desumanização do outro, a consagração de uma classe e a instituição de leis que formalizam a discriminação são atributos dos sistemas totalitários. De facto, o feminismo alimenta-se do ressentimento – que é, como se sabe, o motor do totalitarismo. Com a exploração do ressentimento colectivo soltam-se os rancores individuais: denúncias falsas, julgamentos na praça pública, apodos de «machista» e «misógino» ao mínimo desvio da norma.

Em suma, o feminismo serve-se de uma sorte de esquemas, literários, e não só, para influenciar a sociedade e as estruturas de poder, reforçar o domínio do Estado, fomentar a sua intrusão na esfera privada, e promover uma agenda que prega a igualdade, mas conduz ao seu contrário. A interpretação feminista do mito de Medeia é totalitarista – e uma prova cabal da importância de conhecer bem os clássicos.

Os efeitos da cruzada feminista e da «medeização» da sociedade são visíveis. Na comunicação social, os infanticídios reais e perpetrados por mães – que não só não são raridades estatísticas, como são em maior número do que os cometidos por homens – são desculpabilizados por um exército de psicólogos e outros «especialistas», e discutidos em quadros de depressão, distúrbios mentais ou dificuldades económicas. Recentemente, a ministra da justiça foi à cadeia de Tires e visitou uma mulher que deitou o filho recém-nascido no lixo. Fê-lo, disse, para certificar-se de que estava bem e a receber apoio psicológico. Não consta que tivesse visitado o bebé no hospital. Em Portugal, parece ser mais grave dirigir um piropo do que atirar uma criança para o lixo.

Em Espanha, a «lei da violência de género», concretização penal da premissa, redutora e condescendente, que converte Medeia em vítima – todas as mulheres estão em situação de inferioridade e submissão ao parceiro –, subverteu as regras elementares do Estado de direito. Apesar de juízes e advogados criticarem a lei, denunciarem a sua inconstitucionalidade e apontarem as consequências dramáticas nas famílias, nem os legisladores, e muito menos os grupos de pressão progressistas, emendaram a mão. Apoiados no lema totalitarista «os fins justificam os meios», continuam a minar o já frágil tecido social. Para as feministas, é melhor condenar um inocente do que absolver um culpado.

Se dúvidas houver, veja-se o que ocorreu em 2014, aquando do arquivamento da denúncia de violação na feira de Málaga, por falta de provas e por fortes indícios de que o testemunho da alegada vítima era falso. Conhecida a decisão do tribunal, a Federação de Associações de Mulheres Progressistas manifestou a sua preocupação com o arquivamento do processo, dado o «efeito devastador» que poderia ter na luta contra a violência de género, deixando passar em claro o facto de que a jovem tentou ocultar uma noite selvagem de álcool e sexo sob uma acusação falsa.

No decorrer deste processo delirante, há por vezes momentos quase cómicos, como quando as feministas perseguem a nudez e a pornografia com uma animosidade que faria inveja ao autoritarismo conservador de outrora; ou, num registo mesmo hilariante, quando a directora de uma coisa chamada Chartered Management Institute defende a intervenção das chefias de modo a condicionar as conversas sobre desporto no local de trabalho, as quais, de acordo com a senhora, excluem as mulheres.

No entanto, não obstante os números circenses, o ambiente não está para gargalhadas. Da pretensa insubmissão ao patriarcado e à «masculinidade tóxica», resulta a imposição de padrões uniformes de conduta e a repressão da complexidade das ligações afectivas. Estão assim criadas as condições para a emergência de movimentos como o Me Too, supostamente justo nos seus intentos, mas perigoso, pois esconde um despropósito puritano, uma «fúria de Medeia» que destrói vidas, impõe o medo e condiciona hábitos fundamentais para o equilíbrio das relações humanas.

Num sistema fundado na igualdade, os crimes não têm sexo, cada um é responsável pelas suas decisões e a presunção de inocência é um princípio inviolável. Na distopia feminista, a culpa, se não pode ser atribuída ao homem ou ao patriarcado, deve ser pelo menos partilhada. E, na carência de culpados, a árvore do progressismo é regada de quando em quando com o sangue dos inocentes. O feminismo contemporâneo é inimigo de qualquer sociedade que se quer aberta, livre e tolerante.