Fez-se popular, particularmente entre as novas gerações, a ideia de que vivemos uma época singular e apoteótica, qual acme técnico, levantada por uma rede de aparelhos que nos dizem onde estamos, onde precisamos de ir e o que temos de fazer – e, nalguns casos, até o que devemos pensar. Percebe-se o entusiasmo: não viajamos em carros voadores, como antecipavam as novelas científicas do século XX, mas há uma trotineta pronta a usar em cada esquina das grandes cidades. A propósito, os nossos pais e avós cantavam «get your motor running, head out on the highway». Os filhos e os netos estão mais empenhados em banir os motores ou, quando mais não seja, em domesticá-los.

Devemos reconhecer, apesar de tudo, que o deslumbramento com a técnica não é um fenómeno recente. Em 1861, Jules Michelet publicou La Mer, onde, a páginas tantas, se pode ler: «Nous sommes dans un temps des miracles». Os milagres eram as grandes expedições científicas, os avanços no conhecimento da fauna e da flora, as inovações promovidas pela revolução industrial. Recorde-se que, dois anos antes, Darwin publicara A Origem das Espécies, uma revolução epistémica com poucos rivais à altura do seu impacto, que a fotografia, após duas décadas de consecutivos e variadíssimos desenvolvimentos, começava a consolidar-se como ferramenta indispensável às artes e às ciências, e que foi nessa altura que o termo objectividade entrou no léxico científico, alterando significativamente os métodos de recolha, processamento e análise de dados.

São, pois, exagerados os anúncios de uma época sem precedentes no que se refere ao progresso técnico. Nem o elemento tautológico da crença num tempo eleito – a técnica e a ciência são processos cumulativos, logo, salvo ocasionais regressões locais, navegamos sempre na crista da onda – justifica a euforia. A história está repleta de épocas extraordinárias e todos os homens viveram circunstâncias únicas. Os contemporâneos da revolução industrial, por exemplo, tinham tão boas razões para se crerem privilegiados como nós. E assim era.

No livro Railways: Their Rise, Progress and Construction, o engenheiro Robert Ritchie, outro cativo da técnica, arriscou uma profecia: «Os caminhos de ferro iluminarão os preconceitos e contribuirão para que os membros da grande família humana se conheçam melhor; tenderão assim a promover a civilização e a paz no mundo.» Corria o ano de 1846 e o Concerto da Europa estava na iminência de dar os primeiros sinais sérios de desconcerto. No final da década seguinte, travar-se-ia a batalha de Solferino, cenário escolhido por Joseph Roth para o ponto de partida da saga da família Trotta (A Marcha de Radetzky, 1932), que acompanha a paulatina desagregação do império austro-húngaro, até à morte do arquiduque Francisco Fernando e de uma certa ideia de Europa, na antecâmara do triunfo da desumanidade. A vulgarização dos caminhos-de-ferro não definiu o fim da história, como vaticinara Robert Ritchie; bem pelo contrário.

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É evidente que, sem um conhecimento mínimo dessa história, é difícil imaginar hoje a transformação operada pela máquina a vapor, por exemplo, e, à vista disso, contextualizar e relativizar as conquistas da revolução digital. A estátua de James Watt exposta no museu de Edimburgo, que representa o cientista e inventor com uma túnica, a mão esquerda a segurar um maço de papel e a direita um compasso, evocará, aos arautos do progresso, tempos quase primitivos. Porém, simboliza um avanço técnico ímpar.

As locomotivas e ferrovias admiradas pelo engenheiro Ritchie são até praticamente isentas de efeitos secundários, ao contrário de outras técnicas transformadoras, como a radiografia, por exemplo, que dizimou uma geração de radiologistas antes de ser compreendida, ou a fissão nuclear, que, além de levantar questões de segurança, pôs à disposição da humanidade os meios de se destruir. A rede global e os aparelhos que lhe servem de nós (computadores, telemóveis, dispositivos GPS), definidores da nossa época, podem parecer, ao olhar destreinado, inofensivos. No entanto, também eles acarreiam riscos, não tanto para a saúde, como as supramencionadas ferramentas, mas, como começa a ser evidente, ao nível da organização social e da difusão cultural.

Já me debrucei, em crónica anterior, sobre o potencial de vigilância abusiva desses aparelhos: quando aceitámos acrítica e irrefletidamente a ubiquidade dos instrumentos de comunicação individuais, oferecemos aos governos um meio de controlo permanente e quase irreversível da esfera privada. Notícias recentes, que dão conta de planos sinistros, como a gestão centralizada da localização e velocidade de todos os veículos terrestres ou o fim do dinheiro efectivo, vêm confirmar que estão em curso, um pouco por todo o Ocidente, projectos políticos que têm em vista, em primeiro lugar, o patrulhamento, sem resistência, dos nossos movimentos físicos e financeiros. Com naturalidade, seguir-se-á a imposição de limites ao consumo e à circulação. A pretexto de sucessivas situações de «emergência», sanitárias, energéticas, climáticas ou as que venham a ocorrer aos que pastoreiam o rebanho, caminhamos a passos largos para uma sociedade fechada e ultra-vigiada, na qual até a igualdade perante a lei e a liberdade de expressão serão suprimidas, se é que já não estão substancialmente limitadas. E tudo se desenrola com a complacência da maioria das pessoas. Esta sim, é uma condição inédita na cronologia humana.

Na verdade, um programa de tal envergadura não se cumpre sem a colaboração activa dos cidadãos. E é nesse âmbito que gostaria de sublinhar outro dos perigos das estruturas digitais de comunicação: a doutrinação contínua, muitas vezes exercida pelos pares em regime de realimentação e reforço, e pautada por intervenções pontuais dos donos do sistema com vista a reprimir as raras dissidências que escapam ao filtro da auto-censura colectiva. Os instrumentos de vigilância estão a servir também para construir uma receptividade mansa ao avanço do autoritarismo.

Em vez de favorecer a pluralidade de ideias e a liberdade de expressão, como acreditavam os pioneiros da Internet, esta tem vindo a amplificar uma determinada mundividência, que, pouco a pouco, vai excluindo do espaço público as ideias dissonantes. O marxismo cultural, que segundo algumas luminárias é uma teoria da conspiração, como se Gramsci e Ernesto Laclau fossem personagens de ficção, encontrou por fim o complemento ideal para o substrato académico através do qual os seus partidários promovem, há décadas, o conformismo (ainda que envolto numa embalagem de radicalização infantil) e a diluição da individualidade numa ideia doentia de sociedade. Além do mais, contam com o apoio dos poderes político, corporativo e mediático, os quais, com regulações viciadas e a difusão de uma linha de pensamento único, garantem que o statu quo não regride. É por isso que a geração que está hoje entre a universidade e o mercado de trabalho é, provavelmente, a mais alinhada com o poder de sempre: a sua única rebeldia visa a liberdade e responsabilidade individuais. Mais uma vez: não há registo de uma tal convergência e unanimidade na subordinação à autoridade. A vida social está cristalizada num estado catatónico do qual só um desastre a conseguirá despertar. E esse desastre, percebemo-lo recentemente, pode estar ao virar da esquina.

Não bastava estarem à mercê de um sistema educativo capturado pelos sectores mais medíocres e intolerantes da sociedade: por intermédio dos telemóveis e das redes, bem como da distribuição digital de ficção televisiva e cinematográfica, as crianças e os jovens estão agora permanentemente submetidos a uma «educação para a cidadania», que, tal qual aquela que é formalmente ministrada nas salas de aula, devia chamar-se Instrução para a Obediência. Manipulados na escola e fora dela, os jovens não têm qualquer hipótese de escapar ao proselitismo. Aos evidentes malefícios da digitalização sôfrega há quem contraponha as extraordinárias competências adquiridas pelas novas gerações através do contacto com as engenhocas do progresso. Convenhamos que, para a maioria, a única competência (um dos palavrões favoritos da tecnocracia) é escrever com os polegares.

Há uma guerra cultural latente que ninguém está disposto a assumir. Os conservadores aparentam estar em vias de extinção, ou pelo menos a tentar recompor-se e adaptar-se a um mundo que fala, aos gritos, a uma única voz. O novo liberalismo, confrangedoramente monotemático, dedica-se sobretudo à economia, à qual tudo reduz, e abdica da contenda cultural, quando não se instala no lado errado. Apetece dizer: é a cultura, estúpido! Mas os estúpidos, por definição, não estão preparados para entender sequer a máxima mais curta e directa. Curiosamente, é no socialismo tradicional – universalista e republicano e hostil ao comunitarismo militante – que se encontram os focos de maior resistência ao avanço desta vaga. Decididamente, o futuro não é animador.

À semelhança dos jovens, os mais velhos encontram-se subordinados ao espetáculo político e mediático. Na infância, é sabido, somos imortais. A infantilização da sociedade prorrogou essa ilusão bem para lá dos requisitos mínimos de civilidade, procurando refutar a hipótese muito plausível de que viver, acima de tudo, é uma longa preparação para a morte: a modernidade trouxe consigo a perda do sentido trágico da vida. E agora, da mesma forma que na infância depositamos a nossa vida e segurança nas mãos dos nossos pais, projectamos, na idade adulta, esse abrigo seguro no Estado.

A adesão sistemática às novidades técnicas é apenas um sintoma da infantilização geral: as filas às portas das lojas da maçã mordida ficarão, para a posteridade, como a ilustração de uma civilização em declínio, órfã de deuses, destituída de espiritualidade e refém do materialismo. Como as crianças mais privilegiadas, os adultos cansam-se rapidamente dos brinquedos, adoptam qualquer novidade que os resgate do aborrecimento e, alienados, demitem-se das suas responsabilidades. Os que não o fazem, como a já célebre família de Famalicão, são postos na devida ordem por governantes e pequenos funcionários que se julgam dotados de uma autoridade pós-democrata, primeiro sinal dos pulhas. Apesar de inglório, há que louvar o empenho dos raros resistentes. Como declarou Imre Kertész, que sabia bem o que era o totalitarismo, «no mínimo, salvaguardemos a coragem, que não pode ser nacionalizada», nomeadamente numa altura em que pouca gente tem coragem de sair de casa sem o GPS.

Soluções? Provavelmente não há – à excepção do exercício diário da liberdade e, quando tudo se consumar, da revolta violenta. Porventura há que deixar que a obra desabe sob o peso da demência e que cada um sofra as consequências da sua própria insensatez. Em O Rato e a Ostra, Jean de La Fontaine conta as peripécias de um rato simplório que um dia resolve sair da toca e explorar o mundo. A aventura termina com a cabeça do bicho presa numa ostra e, presume-se, com a sua morte. O fabulista conclui «que ceux qui n’ont du monde aucune expérience, sont aux moindres objets frappés d’étonnement», que é como quem diz, aqueles não têm, do mundo, mais do que um vago conhecimento virtual, olham para todas as novidades como uma revelação. Um dia, quando menos esperam, o baú dos brinquedos fecha-se e ficam com a cabeça presa. Ou sem ela.

Os pontos de vistas expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não reflectem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.