É ténue a fronteira que separa os heróis dos vilões, e há personagens, históricas e imaginadas, que habitam em permanência essa região difusa. Quando somos apresentados por John Milton ao seu Satanás (Paraíso Perdido, 1667), deixamo-nos seduzir, num primeiro momento, pela retórica do anjo rebelde. Percorrendo o Livro I, fica-se com a sensação de que Milton está a esboçar um herói trágico: de linhagem ilustre, perturbado por uma experiência traumática, em queda, corajoso e determinado, com algumas fraquezas. Um tal Satanás, libertado e libertador, revolucionário, seria um representante credível da luta dos homens contra a tirania. E mesmo que se desenvolvesse num anti-herói, mais ambíguo e sinistro, próximo do território de fronteira a que aludi, poderia ainda assim constituir-se como símbolo da procura da liberdade.

À medida que avançamos no poema, a ideia inicial é posta em causa. Satanás revela-se um manipulador que pretende destronar Deus por vaidade e arruinar a humanidade por conta da frustração e do despeito. As suas acções, apesar de inspiradas por um continuado labor intelectual e fundamentadas por meio de monólogos e solilóquios arrebatadores, estão destituídas de sentido moral. Quando se levanta o véu da angústia e do conflito interior, o que descobrimos é um caudilho ressentido cujo principal propósito é o mal. Um mal que, para mais, é o seu único prazer, como o próprio proclama com uma sinceridade medonha: «To do aught good never will be our task, / But ever to do ill our sole delight». Não há como negar a faceta heróica de Satanás nem questionar o lugar que ocupa no inventário das figuras mais fascinantes da literatura. O narcisista de Milton é uma criação superlativa que só tem paralelo nos vilões de Shakespeare e Dostoiévski. Mas a sua obstinação, a recusa em submeter-se («And courage never to submit or yield»), está, apesar da consonância, longe da tenacidade do Ulisses de Tennyson e da resolução expressa nas suas últimas palavras: «To strive, to seek, to find, and not to yield.»

Não é por desconfiar da autoridade divina, e se achar mais competente para governar o Céu, que Satanás pretende destronar Deus. A luta contra a opressão não o motiva. Ele confronta Deus porque julga poder equiparar-se-lhe. A pretensão de igualdade, como é óbvio, esgota-se nessa comparação presunçosa: para o querubim apóstata, a sua superioridade em relação àqueles que o seguem é um facto assente e incontroverso. O maior abalo na leitura precipitada da personagem dá-se, no entanto, quando nos apercebemos de que o herói-vilão inventado por John Milton é um democrata – ou aquilo que hoje se entende por «democrata».

Para tudo o que pretende fazer, Satanás solicita a aprovação do seu povo. Sujeita-se ao escrutínio e aceita o resultado. É verdade que, invariavelmente, as suas decisões são ratificadas pela vontade popular, circunstância que nos induz a imaginar o que faria na hipótese de não conseguir conquistá-la. Posto que a deriva autoritária não é de todo inverosímil, nomeadamente no auge da sua degradação, é mais plausível que uma personagem com o perfil psicológico de Satanás optasse por manipular o povo ou, quiçá, trair os seus próprios princípios até lograr a ovação pretendida. Em suma, Satanás é um déspota niilista e narcisista, mas não é opressivo ou brutal: é partidário do igualitarismo, ainda que de um igualitarismo circunscrito àquilo que acredita ser a sua classe, e do sufrágio universal.

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A História está repleta de autocratas em potência que se infiltraram num sistema democrático para o destruir. O que está por contar, talvez porque seja um fenómeno recente e em curso, é a história dos democratas que usam a democracia, corrompendo-a apenas na ossatura invisível, para impor um modelo totalitário. A manutenção do regime democrático é, aliás, aquilo que lhes concede legitimidade enquanto corroem os alicerces das sociedades livres. As eleições, as actividades executivas e legislativas, os protocolos e debates, tudo o que está vinculado à comunicação entre o poder e o povo decorre de acordo com a normalidade. Porém, lentamente, sem abolir os procedimentos básicos, os novos democratas vão desmantelando o princípio da separação de poderes, esvaziando as leis fundamentais da sua substância categórica, promovendo a unanimidade da comunicação social, difundindo propaganda subliminar, fomentando o pensamento único, e condicionando, ainda que de uma forma furtiva e paternalista, a liberdade de expressão.

Nesta condição de pós-democracia, a censura e a coação nunca são exercidas sem rebuço. Possivelmente por esse motivo, são respeitadas, por vezes até solicitadas, e acaso alguém questione o consenso e o desvio liberticida, ouve-se num pronto: «É a democracia, habituem-se!» Se a objecção subir de tom até tornar-se audível, então invoca-se um qualquer estado de excepção que justifique uma intervenção mais forte, sempre em nome da democracia, quando não da preeminência da mesma na comparação com os sistemas que fazem da censura e da coacção os instrumentos do quotidiano.

Neste contexto, as tensões subjacentes à democracia – entre liberdade e igualdade, entre o interesse individual e o da comunidade –, indispensáveis para a robustez de um regime livre, dissipam-se num pântano social. Os média, que historicamente desempenharam o papel de contra-poder, são cooptados com facilidade para a agremiação do poder político-industrial e passam a operar como amplificadores da voz do dono. O cristianismo, o mais sério antagonista dos pós-democratas (se Deus não existe, tudo é permitido, como constata Ivan Karamazov), é remetido para a clandestinidade, e substituído pela ciência, uma ciência previamente domesticada, amputada da dúvida e da sua índole especulativa e quase lúdica: uma ciência de burocratas. Quanto à arte, que, como se sabe, não prospera muito bem num ambiente estritamente materialista, está sempre sob vigia, e, na eventualidade de violar as normas, é subrepticiamente proscrita. Para o sucesso da «democracia» do século XXI, é crucial que os três vértices da condição humana – arte, ciência e religião – fiquem sob a jurisdição dos «democratas».

Manter a máquina da democracia em funcionamento, está bem de ver, é um risco para o sistema. Com efeito, do pântano pode sempre saltar o «monstro» que vai atrapalhar a engrenagem. Quando isso acontece, entra em acção a propaganda: proclama-se, até à exaustão, que a democracia está em risco e alimentam-se inúmeros folhetins, credíveis ou não, que possam descredibilizar a dissidência. Quando tudo volta à «normalidade» enchem-se as páginas dos jornais e os rodapés dos noticiários com a manchete «ganhou a democracia!», e ei-la consagrada como fim da organização política, e não como o meio que deveria ser.

Numa frase, se as sociedades abertas estão sempre em risco de serem tomadas por um dos seus inimigos declarados, também é verdade que frequentemente os maiores adversários da liberdade são os auto-proclamados democratas. Como ao Satanás de Milton, a estes só lhes interessa o resultado sufragado. Não sendo necessariamente imorais, os neodemocratas são, sem dúvida, criaturas amorais. A democracia, para eles, está acima de tudo. Principalmente da liberdade.

Alguns nem sequer se sujeitam ao sufrágio e sem embargo conseguem impor as doutrinas que professam a milhões de pessoas, se necessário transferindo soberanias nacionais para a alçada de protogovernos centralizados, violando os princípios da igualdade perante a lei e forçando políticas identitárias e comunitaristas a todos os povos, credos e culturas, independentemente da vontade local. E assim, sem qualquer réplica de uma população adormecida pelo sedativo democrático, se institui uma utopia federal. Ora, só quem desconhece a História é que não sabe como acabam as utopias.

É neste estado que se encontram as ditas «democracias liberais». Após a ruína da União Soviética, ficou famosa uma tese que declarava o fim da história. Por «fim», entendia-se a convergência da maioria dos regimes para o território das democracias liberais, qual vórtice dos sistemas políticos, onde, com mais ou menos abalos, se manteriam ad aeternum. Se, desde o princípio, as ideias de Francis Fukuyama foram recebidas com algum cepticismo, hoje, em vista de tudo o que aconteceu a partir 1992, ano em foi publicado O Fim da História e o Último Homem, são quase risíveis.

Mas acreditamos. Acreditamos na ilusão democrática, acreditamos que a civilização ocidental ainda dá lições de liberdade, acreditamos que chegámos de facto ao fim da história, e que, com mais ou menos turbulência, tudo voltará a convergir na rota da decência. Acreditamos que o termo «democracia liberal» não foi esvaziado de todo o seu conteúdo formal. A nova democracia depende dessa crença. Não era difícil: o homem contemporâneo, há muito rendido ao niilismo, é da mesma massa de que são feitos os neodemocratas em exercício. Talvez até ambicione tornar-se um, como o operário soviético que queria ser um alto burocrata estalinista ou o prisioneiro de delito comum de Buchenwald que sonhava ser promovido a kapo.

Fiódor Dostoiévski reparou, antes dos demais, na terrível ascensão do niilismo no coração da sociedade ocidental. É com horror que constatamos que o Grande Inquisidor (Os Irmãos Karamazov, 1880), personagem da sua lavra, habitualmente interpretado como antecipação metafórica da tempestade que se abateria sobre a Europa no século XX, descreve com tanto ou mais rigor as democracias modernas: «Hão-de nos contar tudo, tudo, até os segredos mais dolorosos das suas consciências, e nós decidiremos tudo e eles acreditarão na nossa decisão com alegria, porque ela os poupará à grande preocupação e aos horríveis tormentos actuais da decisão pessoal e livre.» Por sinal, a obra do escritor russo foi recentemente eleita como ponto de mira dos censores do bem. O pecado de Dostoiévski – e de Tchaikovski e outros gigantes cujos ombros devíamos aproveitar para ver além do horizonte da nossa insignificância: nascer no país errado. Ao que tudo indica, haja ou não quem se atreva a escrevê-lo nas paredes do metro, o Grande Inquisidor vive.

Nota editorial: Os pontos de vista expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não reflectem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.