A Ilíada, obra seminal da literatura europeia, abre com uma guerra, uma obstinação e uma pestilência. Os gregos e os troianos estão a entrar no décimo ano do conflito desencadeado por Helena, a do «rosto que lançou mil navios» (Marlowe), quando os soldados de Agamémnon, em resultado da teimosia do seu rei e comandante, começam a ser dizimados por um surto de peste lançado por Apolo. A conselho de Calcas, e consciente da inelutabilidade do arbítrio dos deuses, Agamémnon acaba por ceder, mas não sem antes exigir uma compensação, provocando a cólera de Aquiles, que depõe as armas e se retira para a sua tenda, ali permanecendo vários dias, alheio ao descalabro bélico dos aqueus.

É um facto que, como bem assinalou a classicista Maria Helena da Rocha Pereira, aos poemas homéricos falta ainda «uma concepção unitária da personalidade (…), a noção de vontade, que é posterior». Contudo, encontra-se na Ilíada o embrião daquilo que pronto se desenvolveu num tema basilar do pensamento ocidental: a hybris do poder e o seu choque com a vontade individual, confronto que, insolitamente, tantas vezes expõe a fragilidade dessa mesma vontade.

Quando Shakespeare refundou a literatura, já a concepção unitária da personalidade referida por Rocha Pereira se havia afirmado, ainda que não seja descabida a hipótese, defendida por alguns críticos, de que foi o bardo quem nos inventou, quem definiu a forma como nos vemos e avaliamos e como interpretamos os outros. Independentemente destas considerações, o que é certo é que Shakespeare foi capaz, como ninguém antes ou depois dele, de sondar laboriosamente a complexa teia da condição humana, pôr à vista e articular os seus vários níveis, e explorar todas as ligações possíveis entre os diversos atributos que nos definem individual e colectivamente. Veja-se a tragicomédia A Tempestade, por exemplo, remate testamental e perfeito da sua carreira a solo.

A Tempestade começa com uma tormenta que afunda um navio e atira os passageiros para as praias de uma ilha quase deserta governada por Próspero, feiticeiro, e, em tempos idos, duque e soberano de Milão, privilégio perdido pelo amor aos livros, e recuperado no final da história por mérito da sensatez e das luzes que a dedicação à biblioteca lhe facultou. No barco viajavam precisamente aqueles que o traíram e forçaram ao exílio: António, seu irmão, e Alonso, rei de Nápoles. O acidente, provocado pelos sortilégios de Próspero, organiza os náufragos em grupos isolados e reduz a hierarquia aristocrática a uma ordem natural sobre a qual o mágico pode então operar com vista a reaver o seu posto na estrutura do poder. É na abertura, enquanto o navio é golpeado por um mar proceloso, que o contra-mestre profere a frase lapidar, já mencionada nestas crónicas, «What cares these roarers for the name of king?», que em virtude da polissemia arcaica de «roarers» tanto pode ser alusiva às ondas e à veemência do mar como à determinação de um povo insatisfeito.

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Uma vez serenada a tempestade, Próspero põe de imediato o seu plano em andamento. Para o ajudar, conta com Caliban e Ariel, dois seres sobrenaturais que se encontravam cativos aquando da chegada de Próspero à ilha, e que ele libertou apenas para sujeitá-los à sua autoridade. Um e outro não podiam ser mais diferentes. Caliban é uma criatura infra-humana, dominada pelas paixões e impulsos libidinosos e incapaz de se deixar persuadir pelos argumentos da razão. Para mais, odeia o seu amo, pois este, como é natural, insiste em vedar-lhe a concretização do seu maior desejo: estuprar Miranda, filha de Próspero.

Ariel é uma alma indómita, leal ao soberano da ilha, mas com um único objectivo: a liberdade. Na realidade, ambos querem ser livres. Mas enquanto Caliban procura tão-somente a licença de satisfazer os seus desejos mais viscerais, aceitando submeter-se a um tirano, contanto que este lhe tolere os excessos, Ariel, destituído de arrebatamentos eróticos, anseia por uma liberdade pura, quase abstracta, isenta de qualquer constrangimento. Caliban é carne; Ariel é espírito.

De acordo com um juízo platónico deste triângulo de poder, Próspero é o filósofo-rei que representa o logos, ao passo que Caliban e Ariel simbolizam, respectivamente, o eros e o thymos, o desejo carnal e as emoções. Na relação entre o feiticeiro e os seus súbditos, parece esboçar-se a sugestão de que a liberdade só é viável e verdadeira quando a razão permanece ao comando das paixões. Por outras palavras, somos escravos das nossas paixões e podemos ser donos das nossas elucubrações.

Como referi, o naufrágio divide os viajantes em três grupos, cada um ignorante do destino dos outros. Um dos grupos é constituído por António, Alonso, o seu irmão Sebastian, e Gonzalo, o conselheiro real, enquanto do outro lado da ilha estão Trinculo, o bobo da corte, e Stefano, o criado bêbedo do rei. Há ainda Fernando, filho de Alonso, que desperta sozinho após o naufrágio, e que é manipulado por Próspero no sentido de se apaixonar por Miranda, unir as cortes de Milão e de Nápoles, e acautelar conflitos presentes e futuros. Voltarei ainda à discreta Miranda. Permita-se-me destacar o dueto de bufões, Trinculo e Stefano, cuja importância para o desenvolvimento da tese de Shakespeare é muito maior do que, numa primeira leitura, a ligeireza e jocosidade das suas cenas nos pode fazer crer.

Expedientes de alívio cómico na aparência, as rábulas de Trinculo e Stefano são todavia fundamentais para iluminar as intenções do autor, nomeadamente no que se refere a um dos temas principais da peça: o problema da escolha dos governantes. Stefano é um fanfarrão inebriado que, por obra do vazio de poder criado por Próspero, e instigado por Caliban, se convence de que pode ser rei. Exonerado da hierarquia vigente, Stefano, como qualquer um, sente-se com legitimidade para tomar o poder. É um tolo, sem dúvida, mas, convenhamos, não é raro as cúpulas dos sistemas políticos estarem ocupadas por tolos, tenham sido eles promovidos por uma revolução, por nascimento ou pelo sufrágio do povo. No final de A Tempestade, será o filósofo-rei, titereiro da utopia (mais no sentido antigo do que moderno do conceito) posta em cena por Shakespeare, a recuperar e a exercer a sua soberania sobre tolos (Stefano e companhia). Porém, a história podia ter tido outro desfecho, como tantas vezes aconteceu e acontece. Posto isto, voltemos a Miranda.

Objecto da cobiça de Caliban e joguete de Próspero, Miranda é tida como personagem passiva e subordinada aos interesses dos outros, um pouco como a Ofélia de Hamlet. Claro está que, mais tarde ou mais cedo, despertaria a atenção da (sub)cultura do cancelamento (ou do ressentimento), à qual Shakespeare, até agora, à conta da sua grandeza ímpar, tem resistido. Aconteceu em 2017, na estreia de Miranda, ópera contemporânea com música de Henry Purcell, libreto de Cordelia Lynn, e uma leitura feminista de A Tempestade, em particular do papel desempenhado pela filha de Próspero. A sua primeira fala («Fui exilada à força, fui violada, fui noiva-criança…») não augura nada de bom, mas o que vem a seguir supera todos os receios: nem a música de Purcell – nem sequer o sublime Dido’s Lament! – ajuda a suportar a unidimensionalidade das personagens e as platitudes e o maniqueísmo quase infantil do enredo.

Julgando ter identificado uma tremenda injustiça na forma como Miranda é tratada, os autores da ópera reduziram a espantosa riqueza temática de A Tempestade a um conflito de sexos, e, animados de um espírito revanchista, resolveram fazer uma sequela lírica, que, no final, tudo espremido, não vai além de um ajuste de contas com o «patriarcado», seja lá o que isso for. Miranda é um espectáculo confrangedor, adequado aos tempos filistinos que vivemos, mas a anos-luz da subtileza poética de Shakespeare.

Daqui a duzentos ou trezentos anos, se sobrevivermos como animal criativo a estes delírios, os nossos descendentes vão ter um trabalho formidável para identificar que psicose ou vírus mental nos terá assaltado neste início do século XXI. E se nos estudarem com afinco, talvez percebam também por que razão elegemos tantos Stefanos para nos governar, e, amiúde, ainda os elevamos à categoria de heróis, circunstância que, sem me atrever a classificar como causa ou consequência, acredito estar relacionada com o ocaso cultural em que nos encontramos e com o terrível pendor para a obediência e padronização do pensamento.

Que a providência nos livre dos filósofos-reis e ainda mais dos tiranos esclarecidos, mas um reino de tolos governado por tolos não é certamente um passo no sentido de uma sociedade mais aberta, pacífica e educada. Como diz Aquiles logo no canto primeiro da Ilíada, «Rei voraz com o próprio povo, é sobre nulidades que tu reinas» (v. 231), asserção que poderíamos relacionar com a expressão idiomática «o cego a guiar os cegos». Vazados os olhos com as nossas próprias mãos, não por vergonha (antes fosse), mas por um misterioso impulso para a auto-destruição, erramos agora pela sombra, cativos da vulgaridade e da propaganda, e programados, como um enxame de vaga-lumes, para o disparo coordenado de sinais de virtude em resposta a todos os tipos de estímulos, inteligíveis ou subliminares. Se os livros de Próspero ainda não arderam, também já não podem ser lidos por nós.