O medo é a resposta adaptativa, projectada e preservada pela selecção natural, à percepção de perigo. Como quase todas as características psicobiológicas, manifesta-se com uma extraordinária variabilidade: na dose certa, é um instrumento de sobrevivência; abaixo de um determinado limiar, seja por desconhecimento dos riscos, intrepidez desmedida ou desordem neurológica, põe em causa a segurança do próprio ou dos outros; em excesso, pode afectar a qualidade de vida e restringir a liberdade pessoal; finalmente, nas condições favoráveis à sua difusão e amplificação, apresenta-se como factor de disrupção social.
Apesar de ser comum a todos os membros da espécie, o medo é um atributo individual. No entanto, quando se propaga através dos canais de interacção social, e sempre que se intensifica, local e globalmente, em consequência de fenómenos complexos de realimentação, pode converter-se numa doença colectiva. Investigar os dispositivos, as causas e as consequências do medo distribuído não nos protege da sua corrosividade e muito menos daquilo que lhe dá origem. Fazemo-lo, mesmo assim, na esperança de conseguir entender um pouco melhor as circunstâncias que favorecem o advento de episódios de pavor colectivo. Então, na posse desses elementos, ainda que difusos, talvez nos sintamos mais preparados para enfrentar os efeitos secundários do medo: a intolerância, a fúria persecutória e a violência.
Perante problemas polifacetados, de formulação obscura e compostos de uma gama de fenómenos que incluem, entre outros, a invulgar complexidade da mente humana e das relações sociais, a ciência e a técnica são ontológica e, porventura, epistemologicamente, exíguas. Assim sendo, é na arte, na História e na religião que devemos procurar respostas minimamente convincentes às dúvidas que nos inquietam. O cinema, a arte por excelência do último século, impõe-se, com frequência, como o palco ideal para a representação das angústias contemporâneas.
The Ox-Bow Incident (Consciências Mortas, em português) é um filme norte-americano de 1942, realizado por William Wellman e protagonizado por Henry Fonda e Dana Andrews. Passado no Nevada, em 1885, com fazendeiros e vacas, xerifes e diligências, e o linchamento de três homens inocentes por um bando de justiceiros como retábulo central, Consciências Mortas é, em aparência, aquilo que se convencionou chamar de western. Em aparência porque, apesar de incluir alguns elementos e códigos do género, prescinde de outros, e desenrola-se, tematicamente, num registo que se aproxima do filme negro e que antecipa os westerns crepusculares e psicológicos, como Johnny Guitar ou O Homem que Matou Liberty Valance. Mais do que um filme de acção, Consciências Mortas é um estudo sobre a violência colectiva e uma das suas principais causas: a força que, em determinadas conjunturas, persuade os seres humanos a promover e a seguir (não necessariamente por esta ordem) padrões de comportamento colectivos, desprovidos de coordenação centralizada e irracionais. Por outras palavras, é uma espécie de breviário sobre a mentalidade de rebanho.
Consciências Mortas não é panfletário, e muito menos uma fábula moralista sobre a justiça e a pena de morte. É, antes de mais, uma obra excepcional, fora do tempo, e que, precisamente por ter escapado à radicação temporal, conserva, passados quase oitenta anos desde a sua estreia, uma frescura, um vigor estético e uma subjectividade penetrante, atributos facultados pelos níveis de leitura sucessivos que se revelam em cada novo visionamento. Consciências Mortas é aquilo nos habituámos a designar como clássico.
Baseado no livro homónimo de Walter Van Tilburg Clark, o argumento conta a história de um grupo de homens (e uma mulher) que, quando avisados do homicídio do fazendeiro Kincaid por ladrões de gado, formam espontaneamente um bando para perseguir e linchar os autores do crime, acabando, porém, por executar três inocentes.
O medo é transversal à narrativa: o medo de Rose Mapen, empurrada para fora da cidade pelas mulheres casadas – que, por sua vez, a atormentaram por temor ao alvoroço que uma jovem solteira pudesse causar entre os seus maridos; o medo dos fazendeiros e vaqueiros, incapazes de travar uma onda de roubos; o medo de Gil e Art, que se associam aos justiceiros por receio de serem confundidos, na cegueira da perseguição, com os criminosos – e que também por isso se reprimem, num primeiro momento, de se declararem discordantes com o linchamento; e a cobardia de Gerald Tetley, o filho do major, incapaz de se impor e travar os abusos do seu pai. Estes medos individuais promovem-se mutuamente e dão azo a uma histeria colectiva e uma raiva que só a catarse de violência consegue mitigar.
Um segundo ingrediente para o desastre, não despiciendo, é o tédio e a carência de expectativas. O que é que se pode fazer na cidade? – pergunta Gil na abertura do filme. Jogar, comer, beber, dormir e brigar, responde o taberneiro. Há ainda que destacar a personagem do major Tetley, um homem sem qualidades, com um passado obscuro e destituído de qualquer credibilidade junto da população, mas que se afirma como chefe dos justiceiros, sem que ninguém o confronte e questione a sua legitimidade para levar a cabo uma missão que viola os fundamentos das sociedades livres e justas. Os homens seguem-no, sem duvidar das suas motivações. É ele quem convoca o plenário que confirma a sorte dos três cativos: todos têm direito a voto e apenas sete – número bíblico que simboliza a perfeição do trabalho de Deus – se opõem à execução. A maioria ganha. A democracia prevalece. Cabe aqui dizer que o livro de Clark no qual se baseia o filme foi escrito entre 1937 e 1938, aquando do governo nazi na Alemanha, governo que, recorde-se, foi eleitoralmente validado.
Resumindo, Consciências Mortas é a história de um grupo de homens assustados, desesperados e manipulados, que, de cedência em cedência ao domínio do medo, e sem informação suficiente para uma decisão criteriosa, descem aos abismos morais da consciência: uma vez confirmada a sentença (pelo voto, nunca é de mais recordá-lo), os prisioneiros são enforcados. É então que se descobre que os verdadeiros culpados já foram encontrados e que a noticia da morte de Kinkaid havia sido manifestamente exagerada (afinal, o fazendeiro estava apenas ferido).
Chocados com a sua própria iniquidade, os homens regressam à cidade e à taberna onde tudo começara – opção dramática que sublinha o carácter cíclico, fechado e opressivo do drama encenado por Wellman. Com todos os homens presentes, menos Gerald Tetley e o major (forçado a outro destino, que não o previsto inicialmente por Wellman, pelo código Hays), Gil lê em, voz alta, a carta de despedida que Donald, um dos condenados, escrevera à mulher e aos filhos. A epístola termina com uma questão, «o que é a consciência de toda a gente sem ser um pouco da consciência de todas as pessoas que já viveram?», que parece um eco das palavras de Tocqueville em 1835: «a democracia não só faz esquecer a cada homem os seus avós, como lhe esconde os seus descendentes e o separa dos seus contemporâneos recondu-lo sem parar a si só e ameaça encerrá-los enfim por inteiro na solidão do seu próprio coração.» (Da Democracia na América II, segunda parte, cap. III).
Sem instrumentos que a protejam de si própria, sem freios e contrapesos e instituições conservadoras, a democracia está sujeita ao assédio periódico de maiorias dispostas a suspendê-la ou anulá-la, e que usam, para o efeito, o direito de voto que a própria democracia lhes confere. Não falta, em qualquer sistema democrático, por mais sólido que se julgue, um número considerável de elementos prontos para abdicar, à primeira dificuldade, susto ou incerteza, da liberdade e da sociedade aberta em que vivem.
Acrescente-se, à laia de conclusão, que a mentalidade de rebanho nem sempre se manifesta com actos de violência extrema ou petições para a suspensão da democracia. Na maior parte das vezes, circunscreve-se ao fanatismo e à delação da dissidência. Quem se afasta do grupo, é imediatamente sinalizado, rotulado (de negacionista, por exemplo) e remetido para as catacumbas da sociedade. Trata-se de um distúrbio que se propaga furtivamente e cuja taxa de contágio dispara em ambientes de forte actividade social. A mentalidade de rebanho é uma doença viral.
No Otelo de Shakespeare, quando o mouro de Veneza desmaia e cai, torturado pelo ciúme, Iago diz: «Work on, my medicine, work!» O «medicine» é o embuste que conduz Otelo à dúvida, ao ciúme, e, no final, ao homicídio e suicídio, e deve aqui ser traduzido como veneno. Ora, se investigarmos a etimologia da palavra vírus, encontramos o termo latino virus, que significa veneno. Os vírus, efectivamente, trabalham bem, são máquinas adaptativas muito eficientes. Mas essa eficiência não é exclusiva das moléculas de ARN que se reproduzem à custa das células humanas. Como vimos, há vírus mais subtis, que encontram na ignorância ou na ingenuidade dos homens o terreno propício para a sua disseminação. Repare-se no que diz Iago, o grande manipulador da literatura ocidental, logo após a famosa frase supracitada: «Thus credoulous fouls are caught». Que é como quem diz, é assim que os tolos são enganados.