1.No dia 12 de março uma estrutura do PlanAAP, a RePlan (Rede de Serviços de Planeamento e Prospetiva da Administração Pública), publicou o documento “Megatendências 2050, Mundo em Mudança: Impactos em Portugal – uma Breve Introdução”. Trata-se de uma introdução ao Relatório Megatendências 2050, que pretende ser apresentado no final deste ano. A expectativa está criada! É de saudar o documento e a abertura à referida ‘participação cidadã’ de que se espera evidência. O futuro dependerá de facto de nos dispormos coletivamente a pensar, a debater e actuar sobre os futuros!

São 9 as Megatendências apresentadas: • Agravamento das alterações climáticas • Pressão crescente sobre os recursos naturais • Diversificação e mudança dos modelos económicos • Evoluções demográficas divergentes • Um mundo mais urbano • Um mundo mais digital • Aceleração do desenvolvimento tecnológico • Um mundo multipolar • Novos desafios à democracia.

Sobre Megatrends 2050 há já alguma literatura. Em 2010, publicado pelo Finland Futures Research Center da Turku University (Finland 2050 in the Perspective of Global Change); em 2012 do The Economist (Megachange. The world in 2050) e da OCDE (Environmental Outlook to 2050. The consequences of Inaction); em 2020 (Roland Berger Trend Compendium 2050); em 2023 pela Megatrends Watch Institute (Megatrends 2050); etc. Assinalar um caminho já percorrido por outros e megatendências já repetidamente apresentadas é uma obrigação. Em suma, em relação à Megatendências apresentadas não há grande novidade. Há, ainda assim, muito a dizer.

Sendo de louvar o reativar da previsão e prospetiva depois de cerca de duas décadas de ausência, já não é certo na actualidade que a governança antecipatória e a gestão dos impactos e da transformação social possam estar dependentes apenas de melhores políticas públicas do Estado central (obviamente necessárias) e ater-se a uma estrutura centralizada da Administração Pública. De facto, precisamos de uma Rede Nacional para a Transformação Social que nos possibilite uma compreensão das ‘Visões de Futuro’ ou ‘prefigurações locais de futuros desejados’ (João Ferrão) em Portugal. A verdade é que os impactos das megatendências, assim como a resiliência e adaptação inovativa dependerá do (des)encontro entre melhores políticas públicas centrais e visões de futuro de populações, instituições e cidades a um nível nacional.

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Tal como percebemos da possibilidade de globalizações a partir de baixo, também sabemos que podemos influenciar o futuro com Planos Transformacionais a partir de baixo. Assim, por um lado, é uma arrogância um punhado de gente de Lisboa da Administração Central considerar que pode pensar os futuros do país. Por outro lado, pensar o futuro é, em si mesmo, um recurso, uma potencialidade para o bem-estar e a felicidade pelo que, recusar essa capabilidade (Amartya Sen) aos demais cidadãos, é criar uma privação, dependência e pobreza. As megatendências, ao não evidenciarem essa visão construtivista e a criação de cenários alternativos, são apresentadas como determinantes estruturais globais: nós vamos ser impactados e…pronto, é isso – é o destino. Quanto à linguagem dos impactos sobre Portugal, era preferível indicadores com o mesmo nome (aumento/escassez/pressão/desafios) ao invés de uma proliferação de sinónimos. Identificar variáveis típicas como ‘velocidade’ e ‘natureza’ da mudança seria também útil para evidenciar a variabilidade que poderá estar em causa.

Mesmo no quadro estrito das Megatendências, nota-se uma ausência de referência a saltos extremos: tecnoexplosão pela ‘IA geral’ (AGI) e colapsos glocais por guerras, pandemias ou desastre ecológico rápido (‘global colapse scenario’ como referem as Nações Unidas). Para além destas possibilidades que já têm nome, convinha uma referência a eventos ‘cisne negro’ (o desconhecido imprevisível), ‘wild cards’ e a ‘game changers’ (forças disruptivas que mudam os paradigmas actuais) que são difíceis de mapear e por isso se torna mais necessário ainda um continuo fórum aberto sobre os futuríveis.

2. Em relação a ‘game changers’, o pensamento de que o futuro é causa do presente (e a mudança no paradigma científico que tal implica) não é de todo claro que seja um pressuposto do documento. Podemos querer antecipar o futuro de forma a ter uma resiliência aos seus impactos. Algo diferente, é considerarmos que as ‘Visões de Futuro’ têm a função social de utopias/distopias que se autorrealizam ou autodestroem, ou seja, moldam o presente para que se possa optar activamente por uns futuríveis e recusar outros.  O futuro como escolha é um imperativo de haver futuro. As Megatendências colocam-nos constrangimentos, oportunidades e desafios mas as ‘Visões de Futuro’ apresentam-nos escolhas para influenciar colectivamente o futuro.

Assim, em face de determinantes estruturais globais, têm de ser identificadas ‘Visões de Futuro’ que funcionam como escolhas. Essa é a ideia subjacente à distinção entre Mau e o Bom Antropoceno: o diagnóstico da situação do planeta por um lado e a responsabilidade, consciência e vontade de moldar o futuro por outro.

Concebendo o futuro como escolha, podemos identificar o ‘Business as usual’ e a ‘transformação social’. Ainda que de forma não explícita, o documento parece grandemente optar pelo ‘Business as usual’. Considerando a opção Transformação do Nosso Mundo (título dos ODS que saíram em 2015 – portanto a opção não é minha), deveríamos considerar pelo menos a discussão de 2 cenários: o da ‘Modernização ecológica’ e o do ‘Decrescimento convivial’. Se no primeiro, os problemas da sustentabilidade (ambiental; social; económica e de governação) podem ser resolvidos no quadro institucional actual, apostando em ajustes com apoio na tecnologia e (muito importante) a mudança do papel do Estado; já a segunda implica que pensemos efetivos cenários de mudança comportamental. Qualquer que seja o caminho, obrigamo-nos já ao objetivo da neutralidade carbónica em 2050!

Só ‘Visões de Futuro’ alternativas coletivamente partilhadas e debatidas em cada instituição e em cada cidade poderão colocar em causa os nossos condicionantes materiais e impulsionar a mudança. Talvez convenha sublinhar que não são só os condicionantes materiais que são causa da mudança. Assim, para além de meras novas políticas públicas, precisamos de uma subpolítica (para usar Ulrick Beck) em que a acção colectiva da sociedade civil e instituições seja um ímpeto transformacional. Ou seja, só com ‘Visões de Futuro’ podemos fazer arranjos de governança entre mudança top-down e bottom-up e escalar a transformação.

3. E aqui temos uma questão que também é fundamental em termos metodológicos: quem faz a diferença quando se pretende conciliar urgência e utopia? Para responder às Megatendências temos de apostar (a palavra é essa pois trata-se tanto de um jogo como de um conhecimento científico de feedforward e feedback) em instituições transformacionais e líderes transformacionais. Sem tais elementos centrais, nem vale a pena começar a jogar!

Portanto, para além das Visões de Futuro, e em função delas, já deveríamos poder aceder a uma consolidada ‘Lista de Boas Práticas’, ou seja, os casos de sucesso com os quais podemos aprender: portanto instituições e líderes transformacionais. Para além das instituições da Administração Pública central, precisamos de um RePlan-municipal que nos possibilite as boas práticas das Câmaras, das cidades e suas populações.

Precisamos de saber quem são e premiar os nossos líderes transformacionais. As boas práticas com impacto no nosso futuro têm de ser referidas e disseminadas para que possam ser desde logo escrutinadas e depois, se for o caso, replicadas e escaladas. Tal não deve apenas acontecer a um nível técnico e em ‘bolha’ pois não se compagina com a velocidade e a natureza da transformação de que necessitamos. E, como afirma a Comissão Europeia, o Sector Público tem a obrigação de ser exemplar quer mostrando ambição na mudança, liderando pelo exemplo, comunicando de forma efetiva com um público em geral, criando esquemas de incentivo à mudança e ajudando a transpor barreiras infraestruturais e institucionais. Na página da Comissão Europeia (green best practice community – Public Administration Sector) nos 49 temas disponíveis de mudanças positivas na Administração Pública não há qualquer caso de Boa Prática Portuguesa! Mas até ao final do ano deve haver tempo para colocar uma ou duas! Como se arrogam o direito de pensar o futuro aqueles que não apresentam quaisquer boas práticas!

4. No quadro das instituições públicas, as Universidades deveriam ser ‘game changers’ nesta transformação. Desde logo, não podemos fazer a transformação sem a centralidade das novas gerações. Por outro lado, a Transformação da cultura implica a da educação, a da ciência e da tecnologia, a dos ethos institucionais e, portanto, uma gestão da transformação em que as Universidades são centrais. Nas Universidades o conhecimento em muitos casos transmitido segue ainda o paradigma da ciência normal anterior: um pensamento em silos e assente na probabilidade e, portanto, numa lógica de certezas espartilhadas e em que a incerteza pode ser medida como ‘desvio’ e ‘outlier’. Num tempo de profundas incertezas, as probabilidades são uma ajuda mas não se pode descurar as possibilidades por muito ‘marginais’ que sejam. Por um lado, as marginalidades tendem a difundir-se para a o centro e, por outro, é também nas marginalidades que podemos encontrar boas soluções de futuro que devemos disseminar. Temos de ter cuidado com os ‘cisnes negros’ e apostar bem em ‘game changers’! E isto pode e deve ser aprendido.

As universidades precisam também de uma imensa mudança no papel do estudante, deixando de ter uma lógica de prelúdio para a vida profissional/adulta e considerando-o como cidadão ativo. Ou seja, com possibilidade de escolha do seu percurso, escolhendo X ‘majors’ e Y ‘minors’ de várias áreas científicas (naturais, sociais, artísticas, tecnológicas e políticas) com responsabilidade e liberdade de forma a terminar com o pensamento em silos e poder atuar o melhor possível no quadro de uma agenda global 2030 (ODS – que muitos estudantes desconhecem) e no quadro das Megatendências, das Visões de Futuro e de Casos de Aprendizagem.

As Universidades precisam de se transformar em palcos ativos da discussão sobre Visões do Futuro, locais onde se criam Planos Transformacionais coletivos para instituições e cidades, a partir de boas práticas existentes e da discussão das mesmas no quadro de tendências e visões.

E, nesse sentido, as Universidades devem também ter cada vez mais disciplinas e cursos que desenvolvem competências sobre o Futuro:  mestrados em Futures Studies (Univ. of Turku – Finlândia; Freie Universitat Berlin; PMU – Arábia Saudita) ou Science in Foresight (Univ. of Houston – USA);  em Design Thinking e Design Estratégico (Strategic Foresight and Inovation- OCAD U – Canada; Design for Emergent Futures – Barcelona School of Design); Sustentabilidade (Future Food Sustainability – Cranfield Univ. -UK; ); Gestão da transformação Social (Future Oriented Project management – Laurea -Finlândia); etc. Em Portugal não há um único curso de mestrado com o termo ‘Futuro’ no título. Aprender o Futuro e gerir a transformação social ainda é um tabu em Portugal.