Na minha última crónica apresentei alguns exemplos para enfatizar a desconexão existente entre as políticas propostas na campanha eleitoral e as realidades atuais, em concreto, na saúde e na previdência pública, fruto da dificuldade que o sistema político tem de acompanhar as mudanças de um mundo em acelerada mutação. Na crónica de hoje pretendo assinalar as falácias lançadas antes das eleições, mitos eleitorais que visam, apenas, à esquerda e à direita, sinalizar “virtude”, ainda que as promessas ou referências sejam inviáveis ao nível das políticas públicas.

Por exemplo, no combate à falta de habitação, vários partidos à esquerda e à direita, aproveitam esta altura para lançar para o ar a ideia de que a crise existente resulta da especulação imobiliária, do alojamento local ou da vinda para Portugal de imigrantes em massa, ignorando que grande parte do problema é, infelizmente, bem mais profundo. A grande verdade é que, nos últimos quinze anos, com a subida de preço das matérias-primas e da mão-de-obra, o custo do IVA, a perda de poder de compra das classes médias e médias-baixas, o envelhecimento da população, e a excessiva burocracia, há pouco interesse, do lado da oferta, na construção de casas, algo que é tido como pouco compensatório quando analisadas outras opções alternativas. Ora, sem uma recuperação consistente e estável dos rendimentos das classes médias e médias-baixas, e uma diminuição dos custos de contexto associados à construção, não haverá, por mais loas eleitorais e planos fantásticos que se lancem, construção a sério nos próximos anos que corrija o sufoco existente.

Por esta altura, não faltam, também, os que anunciam por aí o seu apego pela “vida” e pela “família”, criando divisões fictícias entre partidos à direita. Tais manifestações não são mais do que sinalizações de virtude sem qualquer expressão prática, pois nenhum partido, neles se incluindo CDS-PP ou Chega, pretende agendar ou agendou nos últimos anos qualquer iniciativa para voltar a penalizar o aborto. A questão do aborto é algo que continua a dividir a sociedade portuguesa, e neste plano divisório, digo-o sem reservas, sou dos que considera que o ato em si traduz um dano moral. Tão pouco vejo como o aborto possa ser tido como um direito fundamental, ou como um ato de disponibilidade livre. Mas isso não significa que não seja claro para mim (e, pelo que li, para todos os partidos em Portugal com assento parlamentar) que não é viável, nem desejável, que se volte a consagrar uma tutela penal, em que mulheres que praticaram abortos sofram o estigma do crime, ou em que o ato em si tenha de voltar a ser praticado em condições de baixa saúde pública ou de ilegalidade. Nesta linha, o grande combate ao aborto ou até a defesa das famílias faz-se, não na sinalização de virtude associada à penalização do aborto ou o ataque à diferença, politicamente incipientes, mas na defesa de tudo aquilo que, hoje, faz da constituição de uma família um ato heróico.

Sim, porque constituir família, hoje, nas classes médias e baixas, é um ato heróico e de resistência, já que Portugal se transformou num pesadelo onde a tributação, o funcionamento do mercado de trabalho, a fragilidade na escola e na saúde, e a habitação, são penalizantes ao ponto de deixarem os mais novos praticamente sem escolha. Por isso, os amigos da família e os inimigos do aborto praticado no desespero e na miséria são os que sem virtude querem promover políticas públicas para desagravamento fiscal dos mais novos, os que defendem radicalmente uma rede de pré-escolar e escolar efetiva e de proximidade, os que têm soluções realistas para médico de família e um sistema hospitalar que funcione, ou quem tenha a visão de perceber que a liquidez no mercado da habitação, sem custos fiscais como o IMT, são fundamentais para que possa haver famílias.

No próximo dia 10 de Março há eleições. O que se espera é que Portugal possa em definitivo virar uma página, iniciada em 2011, de libertação de um tipo de socialismo que nos empobrece, e que o período de 2015 a 2024 adiou. A perda de relevância do socialismo nas gerações mais novas é auspiciosa. Seria muito positivo que 2024 abrisse um novo ciclo político plural, mas afastado dos socialismos, conservadorismos e dos mitos que dominaram um século que já acabou, há mais de duas décadas.

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