“Devemos escolher entre  champanhe para alguns  ou água potável para todos.”  Thomas Sankara

Desde a instituição da democracia multipartidária em 1994, Moçambique já conheceu sete eleições presidenciais e legislativas, quatro provinciais e oito autárquicas. E todas foram marcadas por episódios de intolerância política, violência e fraude nas urnas e na contagem dos votos. Em suma, pode-se afirmar que em apenas 30 anos e eminentemente à custa de financiamento externo, Moçambique excedeu as expectativas mais pessimistas sobre o que nunca deve ser feito num Estado de Direito democrático.

Para um leigo na matéria como eu e já agora, não votante convicto desde 1999, chama-me, contudo, a atenção, a recorrência de aspectos que considero incompreensíveis na gestão do nosso processo eleitoral, nomeadamente, o facto de o Cartão de Eleitor já ser biométrico, mas isso não relevar nada na hora de votar. Porque afinal, como pudemos novamente testemunhar, o registo de votantes nas assembleias de voto não é biométrico.

É essencialmente manual, à semelhança do que sempre se faz com a verificação de outros formatos documentais inseguros e fáceis de adulterar. Culminando com um ridículo pinta-o-dedo, cuja serventia ainda estamos para saber porquê, considerando que posteriormente, entre a urna e o edital, há muitas contagens e recontagens clandestinas ou paralelas até a publicação final dos resultados.

A verificação biométrica na boca da urna, eliminaria pela base, o suposto enchimento de urnas, multidões de votantes estrangeiros para elegerem os nossos deputados e chefe de estado, além de muitas outras irregularidades que alimentam as nuvunguices e britoices do quotidiano mediático. E o mais importante, resultaria na publicação online da evolução das contagens, para o gáudio dos concorrentes e da opinião pública no geral.

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Mas o que me intriga mesmo, é a aparente distracção dos partidos políticos, observadores eleitorais, comunicação social e porque não dizer, os intelectuais, face tão escarrapachada evidência. Coisa que já não vemos, quando se trata de discutir os super-poderes do Presidente da República e de como isto estimula pontapés contínuos à Magna Lei, que nos levam à evidente conclusão que, afinal, a dita partidarização do Estado até tem sustentáculo legal. E desde 1977, vale sempre lembrar. Mas também, estaria esta classe de pensadores orgânicos a levantar o assunto justamente agora, se o putativo sucessor fosse um dos seus camaradas de trincheira ou deles descendesse?

Esta mexicanização política é naturalmente do agrado dos financiadores da dita democracia, visto que até favorece a estabilidade e a prosperidade dos seus negócios. E não pelo Teatro. Paródia. Passatempo, que se instalam ciclicamente nas urnas. De qualquer modo, há uma crise de representatividade democrática em Moçambique que importa escalpelizar.

Sou de um tempo em que os deputados eram eleitos pelas bases populares, nos respectivos círculos eleitorais. Era o chamado Centralismo-Democrático, amplamente participativo, da discussão também dos programas de governação quinquenais, que os eruditos apelidavam de Teses. Mas havia uma grande inconveniência. O voto não era secreto. Era sempre com a mão no ar. E porque cesaristas sempre houve, ainda que marxistas-leninistas, muitos votavam a favor dos lideres, mesmo contra a vontade.

A queda do Muro de Berlim forçou a que os mesmos protagonistas refizessem estes Estados-Gerais em 1994, transformando-os no aclamado Estado de Direito Democrático do voto secreto, paradoxalmente eleito em directório partidário de cesaristas.

Por outras palavras, a questão da representatividade democrática em Moçambique manteve-se sob a mesma tutela bitolada, tornando-se posteriormente numa marca registada de todos os partidos políticos com ou sem representação parlamentar, que de tempos em tempos, se lembram dos ignorados milhões de moçambicanos para lhes legitimarem mandatos dinásticos ou feudais.

Por conseguinte, pela sanidade democrática que ainda resta em Moçambique, o que deveria acontecer era ampliar os mecanismos de representatividade popular nas eleições presidenciais, legislativas e provinciais, permitindo-se que qualquer Cidadão honesto e trabalhador pudesse concorrer a Presidente da Republica ou a deputado, por qualquer circulo eleitoral, se a candidatura fosse investida da legitimidade do voto popular e não apenas por directórios partidários.

Igualmente fundamental, seria penalizar a improdutividade dos deputados eleitos para os diferentes fóruns parlamentares, nem que fosse à custa da perda de mandatos. Se servir de comparação, observe-se o que acontece nos países que financiam a nossa dita democracia. Pessoalmente, não creio que cheguem à dezena – exceptuando o Orçamento e Regalias Parlamentares – o número de leis lavradas pela Assembleia da Republica desde 1994. E muito menos do que isso nas assembleias provinciais.

Ou seja, órgãos maiores, legitimados pelo voto popular, não passam de alçapões do nepotismo, ócio, má-criadice e corrupção, mostrando, uma vez mais, o quão cénico é o afoito debate que se convocou sobre a Separação dos Poderes, qual tábua-rasa de um Estado de Direito democrático finalmente funcional.

Uma conveniente cortina de fumo, que culminará com o violento clister do Voto Indirecto, onde são mandatários partidários sem rosto e não o próprio povo, quem vai eleger o Presidente da República (ou já seria o Rei?). No fundo, o que sempre vimos acontecer no território dos kambas do Atlântico, em que muitas vezes, ministros, juízes e deputados são vulgarizados por Decretos Presidenciais cesaristas.