Passaram dois meses sobre as eleições de 9 de outubro em Moçambique. Esperam-se ainda os resultados. Por lei, o Conselho Constitucional tem até 23 de Dezembro para julgar os recursos e publicar os resultados definitivos. A 24 de Outubro, a Comissão Nacional de Eleições fez o anúncio do apuramento provisório, o que incendiou um ambiente social e político já a ferver.
Quando é que o anúncio dos resultados de eleições incendeia o ambiente? Quando os resultados anunciados contrastam de forma acentuada com o sentimento dominante da realidade. E quando não têm apoio em evidências ou prova suficiente.
E por que estava já o ambiente a ferver? Porque a crónica das eleições em Moçambique é de fraude eleitoral e esta percepção pública tornou-se crescente de eleição para eleição. Porque, há um ano, as eleições locais de 2023 reavivaram essa percepção de fraude. E porque, em 18 de Outubro, o assassinato a tiro de Elvino Dias e Paulo Guambe, colaboradores próximos do candidato Venâncio Mondlane, do PODEMOS, tingiu de sangue a indignação geral. Que poder é este que mata e manda matar?
Estes dois assassinatos cruéis foram a nota mais terrível, soando como aviso intimidatório à contestação. Foram a continuidade do histórico de violência e assassinatos seletivos por “esquadrões da morte” em Moçambique, nos últimos 10 anos, que a imprensa recordou: Gilles Cistac, Jeremias Pondeca, Anastácio Matavele, Jaime Macuane (sobreviveu), Ercínio de Salema (sobreviveu) e, agora, Elvino Dias, Paulo Guambe, Wilker Dias (sobreviveu) e Gamito dos Santos (sob ameaça). O que é isto? Porquê? Para quê? Democracia é isto, é?
Desde 1994, quando, após os acordos de Paz de 1992, a democracia multipartidária se estreou, este é o sétimo ciclo eleitoral moçambicano. Nenhum foi bom. Este é o pior de todos, até agora. Os resultados anunciados mostraram a extrema arrogância da FRELIMO, reclamando a totalidade da vitória para si e por números extravagantes: Chapo eleito Presidente, com 70%; maioria na Assembleia da República, com mais 11 deputados do que em 2019; eleição de todos os governadores provinciais, com maiorias esmagadoras. Diante da benignidade internacional e da impunidade nacional, a FRELIMO não se conteve: usurpou a totalidade da eleição, concentrou ainda mais o poder, esmagou com desprezo a RENAMO, aproveitando a maré baixa do colaboracionismo, parou em 20% o emergente PODEMOS e pôs o MDM nos mínimos. Segundo testemunhos e opiniões conhecedoras, uma fraude eleitoral gigantesca, que incluiu enchimento de urnas em várias assembleias. A Missão de Observação Eleitoral da União Europeia tomou distâncias quanto às eleições observadas e adoptou linguagem crítica, embora em tom contido e moderado face à crescente e brutal deterioração da situação.
Os protestos populares explodiram um pouco por todo o país, surgindo nas diferentes capitais, em dias consecutivos, desde há cerca de um mês. Nuns casos, respondem à palavra de ordem do líder da oposição, Venâncio Mondlane, noutros espontaneamente. Não se pode estranhar. Estranheza seria se não houvesse reacção.
Um académico moçambicano, Roberto Tibana, diz tratar-se de uma “revolta popular”, diagnosticando que o governo já perdeu o controlo da situação e apelando ao diálogo urgente para evitar o “caos total”. O governo respondeu com grande brutalidade policial e militar sobre os cidadãos. Circulam pelas redes sociais vídeos difíceis de descrever pela sua extrema violência. Em número de vítimas, as mortes já vão em 110, segundo a Associated Press, e os feridos andam nas centenas. A Amnistia Internacional apelou ao governo para parar com a violência. A Human Rights Watch denunciou vários casos de uso excessivo da força e a morte de 10 crianças. Os diplomatas em Maputo sabem o mesmo e ainda mais que nós, ou seja, os seus governos estão bem informados da verdade.
A cultura de falta de transparência democrática em Moçambique é tão profunda que não podemos consultar, com rigor e em pormenor, os resultados de quaisquer eleições realizadas no passado, desde 1994. Não são só as de hoje, as do passado também. A única excepção é a Wikipédia e os seus dados são escassos, incompletos e insusceptíveis de permitir aferir da sua verdade: seriam verdadeiros, se fossem verdadeiras as suas bases; mas nunca as vimos, nem as podemos ver. Ou seja, não sabemos, nem podemos saber. É esse o problema, agora também.
A maior prova da gigantesca fraude eleitoral em curso está em que não nos deixam ver as fontes dos resultados a partir das respectivas unidades de contagem. Não mostram os editais, além de que os que sobrevivam a dois meses de “administração” poderão, com forte probabilidade, ter sido viciados. Só nos dão resultados de cima para baixo e não de baixo para cima, tal como são apurados e contados. Um dos instrumentos da manipulação dos resultados, querendo fazer acreditar o que não é crível, é a única fonte pública acessível: uma página Facebook “CNE & STAE Moçambique”, onde as tabelas publicadas tresandam a manipulação. Estamos diante de um sistema de batota organizada.
Que devemos fazer? Portugal tem estrita obrigação de agir em solidariedade com o povo moçambicano e em linha com os valores que afirma. Pelos laços especiais com os moçambicanos, somos até o país europeu que mais tem essa obrigação, para apelar ao diálogo, pôr fim à violência e garantir o respeito dos direitos humanos e das liberdades fundamentais. O que só pode ser feito, se falarmos a verdade e estivermos do lado da verdade. E a União Europeia deve fazer o mesmo.
Para isso, Portugal deve pressionar a União Europeia, no seu conjunto, e cada Estado-membro, individualmente e de forma concertada, a agir sobre as autoridades moçambicanas e as forças da oposição para uma transição política pacífica. Esta transição poderia tomar como base os resultados de 9 de Outubro, se forem ainda verificáveis e aceites por todos, ou apontar para novas eleições a realizar no prazo de um ano, com organização isenta e imparcial, aceite por todos os principais concorrentes. Neste último caso, formar-se-ia um governo de transição multipartidário, com todos os partidos com assento parlamentar, em que nenhum teria a maioria sozinho, com mandato de um ano e um programa focado na estabilidade financeira e monetária, em três outros temas prioritários da agenda do país e na reconciliação nacional. A União Europeia, junto com os seus Estados-membros, deveria, por seu turno, fazer esforços diplomáticos para levar outros Estados da comunidade internacional a adoptar semelhante posição nas suas relações bilaterais e multilaterais com Moçambique. Em resumo, colocar na agenda internacional a democracia em Moçambique.
Sempre defendi que Portugal deve agir, na cena mundial, para apoiar diplomaticamente as necessidades e os projectos dos demais países de língua portuguesa. Por exemplo, quando fui deputado ao Parlamento Europeu, candidatei e apoiei, em 2001, um angolano ao Prémio Sakharov, que ganhou: Zacarias Kamuenho. Este movimento fazia parte da agenda da Paz, quando a guerra civil ainda matava em Angola. Agora, em Moçambique, a necessidade é semelhante: a Democracia, que está a ser defraudada, e a Paz, que está a ser traída. Não é altura de candidatar um moçambicano ao Prémio Sakharov, mas é certamente altura para pôr em evidência como o Prémio Sakharov 2024 atribuído a dois venezuelanos, tem exatamente a mesma agenda que o drama presente em Moçambique: uma eleição roubada, um poder tirânico ilegítimo, a violenta repressão.
Há uma enorme pressão sobre Venâncio Mondlane, que uma contagem paralela do PODEMOS anunciou como vencedor efectivo da eleição presidencial, com 53% dos votos. Continua a dirigir a oposição, usando as redes sociais. Mas está escondido, provavelmente fora do país, para fugir da perseguição do poder da FRELIMO, que, naquela contagem, teria perdido a maioria na Assembleia.
Em 18 de Outubro, mataram dois colaboradores seus, muito próximos. Há poucos dias, terá escapado a uma cilada, que poderia ter-lhe custado a vida. O Estado abriu um processo contra ele, reclamando indemnização de 1,5 milhões de euros por causa das acções de protesto. Se isto não é tentativa de intimidação, o que é que é tentativa de intimidação? A Internacional Socialista não se desmarca deste tipo de actos do seu partido-membro FRELIMO? O Parlamento Europeu não se solidariza com o povo moçambicano, nem se atravessa em defesa da segurança e da vida de um candidato presidencial que disputa a vitória?
Esta semana pode decisiva no Parlamento Europeu. Sendo a semana do Prémio Sakharov, é a semana adequada para chamar a atenção da Europa e do mundo para que há uma outra história igual à da Venezuela, ali no sul da África Oriental, em Moçambique.
A indiferença militante perante a crise em Moçambique vem frequentemente embrulhada em argumentos de não-ingerência, acompanhados do comentário de ser “uma coisa lá entre eles”. É comentário de génese racista, que não pode ser usado nem em surdina. Hoje, não tem vigência possível, nem às claras, nem escondido. E, voltando mentalmente a 1975, não consigo que me saia da cabeça o grito que nos mobilizou até ao 25 de Novembro: “É preciso respeitar a vontade popular! É preciso respeitar a vontade popular! É preciso respeitar a vontade popular!” É demasiada pouca sorte que a efectividade deste grito nem 50 anos depois tenha chegado a Moçambique. Pior sorte ainda, se esse facto for indiferente e desprezível para aqueles que, oficialmente, nos dirigem e nos representam.
Se alguma coisa acontecer a Venâncio Mondlane, não teremos perdão. É que temos imenso para fazer – um imenso que, na verdade, não custa muito. Temos de fazer mais, porque podemos fazer muito mais. Os moçambicanos é que já estão para além do limite.