1. Era um dia banal, uma sessão comum, nada me faria antecipar a sorte de estar ali nem adivinhar a surpresa: que Portugal era aquele de que temos tão pouca notícia?
Habituada como estou ao país ficcional e dependente que nos “servem”, espantei-me. Não devia. Há mais Portugal por detrás de écrans e manchetes e mais oxigénio fora da espuma dos dias e dos seus geralmente desqualificantes episódios. Sentada porém na meia luz silenciosa de uma plateia lisboeta, o olhar e o ouvido fixados no friso de oradores sobre o palco, foi-me porventura mais impressiva aquela descoincidência entre o país “publicado” e a excelência – humana, cientifica,intelectual — que transpirava da sala.
2. Tratava-se de um livro. Aberto e lido, “Médicos e Sociedade” – Para uma história da Medicina em Portugal no Século XX” (By the Book) é, página a página, uma obra substancial e inovadora. Interessará a leigos como eu, será matéria de estudo e consulta, guia de aprendizagem, registo de sabedorias passadas, constará como referência. O tema nada ou quase nada me dizia, a sessão ter-me ia provavelmente passado despercebida não fora o terem tocado audivelmente os “tan-tans” da selva na família: um dos capítulos é exclusivamente dedicado ao meu bisavô Thomaz Mello Breyner, grande estudioso, clínico inovador no tratamento da Sífilis, professor, médico da corte, cidadão de estirpe moral e cultural que nos deixou muito interessantes “Memórias” (e não menos aliciantes “Diários”). Em boa hora fui ao encontro daqueles sábios – os “contados” no livro e os seus “contadores” — agradecendo intimamente ao bisavô que, estou certa, seguiu de algum canto do céu e com deleite igual ao meu esta tarde singular.
3. Tratava-se de um livro mas não foi só isso. Foi o brilho das apresentações escutadas, a qualidade cientifica e cultural dos oradores — António Barros Veloso, Henrique Leitão, Luís Damas Mora, António Rendas (e Salvador de Mello, que tornou possível a obra mercê do patrocínio da José de Mello Saúde); foi o reencontrar essa espantosa simplicidade que costuma definir quem convive naturalmente com o seu próprio saber e faz dele um serviço. Foi enfim o silêncio da plateia perante a palavra do palco. Sessão memorável, um Portugal digno de registo.
4. Um livro é sempre um bom princípio, mas este trazia atrelado uma longa e boa história. Praticante do “a César o que é de César”, vamos ao nosso César. Chama-se António José de Barros Veloso e é um monumento nacional. Pelo que sabe, pelo que fez pela sua vocação clínica, pelo modo como a exerceu, pelo seu entendimento do que é e para que serve a cultura. Pelo que fez com a vida. (Substituiria com vantagem – uma vez que fosse… — qualquer um dos 22 jogadores que todos os dias, vezes demais, vemos nas televisões a correr atrás da bola, e sabe Deus como gosto de futebol).
Barros Veloso, especialista de medicina interna já reformado, exerceu o seu oficio no Hospital dos Capuchos, onde foi director de serviço. Foi sempre um servidor público, assumiu mil responsabilidades, teve carreira exemplar. Tem o olhar atento, o gesto vivo, o diálogo sedutor e, hoje, os mais enérgicos e viçosos 87 anos de que me lembro. Nas suas outras encarnações — a sua vital curiosidade impedir-lhe-ia apenas uma — escreveu um belíssimo livro sobre o Sanatório do Caramulo, é exímio no piano a tocar jazz, dedicou-se, a meias com a mulher, médica também, ao estudo do azulejo de fachada do século XIX, fez e faz incontáveis conferências, possui obra publicada, prémios, reconhecimento.
Ciente e consciente de que era preciso que se conhecesse melhor a nossa (formidável) história médica e das etapas que foram contributo para a medicina universal, Barros Veloso meteu incansáveis mãos à obra. Uma empreitada. Quase novecentas páginas coordenadas por ele, dezenas de autores (médicos, historiadores, sociólogos, biólogos), cinquenta capítulos quase jubilosos na quantidade de história e informação que nos oferecem.
“Fiz um guião mais ou menos cronológico, escrevi os primeiros capítulos…”
Entre a surpresa e alguma dúvida, desagua-se num orgulho pasmado: como foi possível, Portugal tão pequeno, modesto, longe de quase tudo?
Surpreendem-nos os feitos clínicos, as inovações, investigações, estudos, descobertas, mas também as marcas culturais e civilizacionais deixados quando se constata como este largo friso de portugueses esteve em relevo na sociedade do seu tempo: exercendo, inovando, intervindo, discordando, agindo. Perceberam e usaram o poder que tinham, influenciando e transformando: Ricardo Jorge, Egas Moniz, Pulido Valente, o açoriano Azevedo Neves, Reynaldo dos Santos, Lopo de Carvalho, Bissaya Barreto, Abel Salazar, Miguel Bombarda, Corino de Andrade, Jaime Salazar de Sousa, Thomaz de Mello Breyner e… a Rainha D. Amélia foram, entre outros de igual mérito, parte integrante da própria história do país.
5. António José Barros Veloso lembrou-se do historiador Henrique Leitão: conhecia-o, apreciava-o, “elegeu-o” para esta aventura. Pouco depois juntou-se-lhes Luís Damas Mora.
Não seria, decidiram eles, “uma história da medicina do século XX em Portugal”, mas um contributo “para” ela, “tentando perceber o que se passou”. Era preciso contar, “indo buscar o que eles não escreveram”. Sabiam que a tarefa era ciclópica e o resultado incompleto, mas também sabiam que um dia se contará o resto.
“Este livro é sobretudo uma primeira tentativa de abordar a medicina portuguesa do século XX, num registo que não interesse apenas a clínicos ou historiadores”, explica Henrique Leitão. “Aliás, quando se pensa na importância que os médicos e a medicina sempre tiveram na definição de noções tão importantes como vida, morte, normalidade, saúde, corpo, é surpreendente a pouca atenção que esta história tem merecido nas descrições da vida cultural do nosso país.”
Houve a escolha dos autores, a época da escrita, o tempo das revisões (“cyn foi épico ter de cortar alguns textos e uma ousadia tocar naqueles pergaminhos…”), houve o “notável trabalho gráfico da By the Book”. Foram três anos de sobressalto que o livro venceu.
Como se, contra morosidades e peripécias, se fosse escrevendo a si próprio. Lendo-o uma coisa porém é certa: como ponto de partida deve ser impossível fazer melhor.
6. Pedi para conhecer a alma deste livro, ficara muito curiosa. José António Barros Veloso foi amável, conversámos uma manhã. Tinha vindo a pé, pull-over e camisa sem gravata, estava bem disposto. Falou-me da vida, dos filhos (“foi um deles, o Francisco, quem fez o som da “Peregrinação”, o filme do Botelho, trabalha em cinema), de arte, dos seus outros interesses:
“O piano é uma paixão, fiz muita música, tudo de ouvido. Cresci a ouvir a minha mãe tocar Beethoven e Mozart. Este verão toquei no Hot Club com os melhores músicos de jazz da Península Ibérica…Os azulejos? Foi um interesse que nasceu nos anos oitenta. Fotografámos, estudámos, a nossa obra é considerada pioneira…”
Com uma convicção emocionada, recordou João Lobo Antunes: “Ainda fez dois capítulos para este livro . (Pausa triste) Era talvez o único senador português…”
Era, sim.
7. Mafra também é Monumento Nacional.
Voltei uma noite destas para um extraordinário concerto com seis órgãos e três coros que celebravam uma missa de autor anónimo do século XVIII.
Vejo por lá cachos de turistas, tenho pena de não ver mais portugueses nos concertos da Basílica, nos claustros onde cheira a buxo, na monumentalidade daquela pedra de onde se soltam episódios de boa e má fortuna da nossa História.
A travessia do Palácio é uma experiência invulgaríssima, a sua Biblioteca um dos nossos melhores ex-libris. Aprendi recentemente que a Enfermaria – pela forma inovadora como a sua “funcionalidade” foi idealizada e concretizada — continua hoje a ser objecto de alta apreciação, cá dentro e lá fora. Os dois carrilhões e a sua “maquinaria” têm devotos, estudiosos e visitantes vindos de todas as partes, num espanto que desde que a ousadia visionária do Magnânimo D. João V os fez encomendar nunca esmoreceu. Órgãos e carrilhões são citados mundo fora. (E o inexcedível zelo e a sabedoria com que o organeiro Dinarte Machado permanentemente cuida deles é outro caso de reconhecimento internacional).
Mafra não se esquece.
8. Num louvável entendimento de serviço público — a que não pode ser alheia a capacidade de iniciativa de Mário Pereira, director deste Palácio Nacional e a sua “fibra” de zelador pelas jóias do Estado –, os primeiros domingos de cada mês trazem-nos o som dos seis órgãos em concertos organizados por João Vaz. O organista-estrela costuma explicar às plateias da Basílica que a excepcionalidade daqueles momentos musicais não reside apenas no talento dos organistas ou no número dos órgãos, mas sim no facto “único no mundo” (Vaz dixit) de terem sido construídos “para tocar como se fora um só”. João Vaz tem-se aliás “ocupado”, ele próprio, da (inspirada) transcrição para seis órgãos de diversas peças, alargando o leque das escolhas destes (e doutros) concertos, enriquecendo assim o reportório musical à disposição de organistas e músicos. Um quase milagre a preservação de tudo isto. Mas tal como quase sempre acontece com os grandes feitos e ocorreu na história do livro que acima referi, também este milagre tem o nome — e a vontade — de duas, três pessoas, quatro pessoas.
À sua maneira são também elas monumentos nacionais. O que não pode deixar de nos conferir uma espécie de responsabilidade. Imaterial ou humano aquele património é nosso. Aquilo é connosco.