Três coisas são sagradas na vida: a infância, o amor e a doença. Uma criança, o ser que nos ama e um doente, não podem ser atraiçoados, pois estão indefesos perante nós (Miguel Torga, frase aproximada).
1. O frenesim dos dias. A ambição que nos consome. O tempo que não temos.
Tudo começou numa quarta-feira à noite, com uma dor de cabeça. Que diabo, ao longo da sua vida – longa de cinco décadas e meia – tivera dezenas delas e nunca deixara que o impedissem de fazer o que quer que fosse.
Essa quarta-feira à noite foi o dia em que a sua vida mudou para sempre. Era fácil e bem sucedida, tornou-se complicada e à mercê de todos os acasos; era quente e confortável, tornou-se gélida e dura; era autónoma e ilimitada, tornou-se dependente e finita. Tinha tudo: família, uma vida cheia e agitada, dinheiro suficiente para viajar para quentes margens. Tinha tudo: uma casa grande com barbecue e piscina, amigos antigos, verdadeiros, jantaradas e festas. Ainda assim, faltava-lhe tempo para tanta coisa que tinha. Tinha tudo mas queria mais, queria sempre mais. Até essa quarta-feira à noite.
A moinha começou à tarde, ignorou-a, mas a dor que sentiu a seguir ao jantar não podia ser ignorada. Era forte de mais, e um dos lados da cabeça latejava com violência. Ainda consciente, pediu à mulher que o levasse ao hospital. Nos primeiros dias, amigos em rol vieram ao hospital confortar os filhos e a mulher. Ele não reagia e os médicos estavam pessimistas. Aos poucos, pouco a pouco, quase sem se dar por isso, os amigos deixaram de vir. Vidas ocupadas, o frenesim dos dias, a ambição que os consumia. O tempo que não tinham.
O resto da vida passou-o inconsciente. Nunca mais falou, não voltou a viajar, a receber amigos, nada. Até a família, “eventually” (não há palavra em português para falar desta inevitabilidade contingente), deixou de vir. Viveu sozinho o resto dos seus dias.
2. As redes sociais, cheias de notícias, divertimento, interacção humana. Uma profusão de fontes, de notícias, verdadeiras e falsas, tanto faz.
Nunca tivera uma vida social tão cheia: 5 mil amigos proporcionavam-lhe distracção sob a forma de vídeos, notícias verdadeiras ou falsas, anedotas, ligações para todo o género de entretenimento. Fazia like a tudo, gostava que fizessem like ao que postava, e emojis, e fotografias da vida real no instagram, e pedidos de amizade, sempre aceites, os dele e os deles.
O tempo comandava-lhe a vida. Costumava usar a metáfora de Heráclito para ilustrar a sua posição: se um homem não se pode banhar duas vezes no mesmo rio, também ele, sempre em mudança, vivia para que o momento que passava, único e irrepetível, não passasse sem que ele o vivesse. E viver plenamente vivo era ali, na Internet, no facebook, no twitter e tudo o mais que pudesse usar. Separou-se da mulher, que se fartou das horas que passava no computador, agarrado ao smartphone dia e noite, às refeições o aparelho no lugar da faca, sempre a soar, “entrou uma nova mensagem”, um tweet, qualquer coisa.
5 mil amigos. No dia em que lhe foi marcada a cirurgia para remover aquela coisa negra que nascera no seu corpo, comunicou-o no face e recebeu milhares de likes, de ©, centenas de mensagens, votos de recuperação rápida, poemas de enorme beleza e elevado conteúdo estético. 5 mil. Nem um deles o foi visitar ao hospital.
3. Dor. Doença. Morte.
A discussão da eutanásia, tão no começo em Portugal como no Mundo, permitiu que de novo no espaço público fosse discutido o estatuto de quem, pela força impetuosa da doença, se afasta da convivência diária com os seus semelhantes. De quem sofre, sem remissão, e não quer sofrer mais. Da morte.
Já escrevi sobre este assunto algumas vezes e, podendo ser acusado de escrever sempre (ou muitas vezes) as mesmas coisas, julgo ser meu dever fazê-lo: sem a pugnacidade da repetição, sem a insistência indecorosa em assuntos que incomodam, os doentes, o sofrimento e até a morte, continuarão a ser tabu na sociedade moderna, egoísta e egotista.
Já quase ninguém morre em casa, morremos e morreremos no hospital, longe de quem gostamos, sem amor. Não faz mal, pensamos nós que ainda não estamos lá, quando lá chegarmos logo se vê. Não se verá grande coisa, mas não faz mal, de facto. Porque só discutindo e assumindo a doença, o sofrimento e a morte, sem vergonha ou complexos, poderemos começar a assumi-los nas nossas vidas, destarte garantindo aquilo a que qualquer ser vivo aspira, sobretudo nesse momento maior da vida que é o seu termo: a sobrevivência da sua memória, aquilo que o faz ser o único, insubstituível ser humano, que é, e foi.
A memória daquela particular identidade, a sua: para que o carácter único de cada um de nós permaneça, e seja celebrado por quem verdadeiramente nos estimou, preservando-nos como ícones memoriais para sempre presentes na esfera dos vivos. Eis o que temos direito a exigir, eis o que verdadeiramente se discutirá quando se discutir a eutanásia.
E para que, ao recuperarmos a capacidade de encarar de frente a morte, sejamos capazes de fazer um luto sincero, humano, livre de emoções egocentradas; a reflexão sobre a eutanásia terá de ser uma troca de ideias fundamental para a preservação dos nossos valores, identidade e dignidade. Valores, o da vida, identidade, o ser que somos, dignidade, da autonomia da vontade perante o sofrimento e a dor, são os elementos chave dessa discussão, tanto mais verdadeira quanto mais se basear no respeito pelos doentes em toda a sua extensão.
Porque eles (porque nós), indefesos perante nós, não podem ser atraiçoados: negar-lhes o direito ao debate aberto e “desideologizado” sobre a eutanásia e à livre decisão quanto ao seu próprio destino é tão grande traição como traição seria fazer tábua rasa dos valores e dos princípios que estruturam a dignidade do ser humano. Não, este não será um debate político, mas um debate humano, a travar na consciência de todos e de cada um de nós.
Morrer de pé, mesmo se acorrentados a uma cama por um corpo que fenece, eis o que temos direito de exigir aos nossos semelhantes. O que eles têm o direito de nos pedir a nós.