Está em discussão pública o documento “perfil do aluno à saída da escolaridade obrigatória” ou, como aparece nos media, “Perfil do aluno para o século XXI”. Em vez de suscitar entusiasmo da sociedade, a discussão deste documento tem despertado pouco mais que uma reacção sonolenta. Vêem-se algumas tomadas de posição públicas por pessoas ligadas à Educação, mas mais nada. Há quem diga que é por o documento ser vago; por conter um conjunto de boas intenções com as quais não se pode deixar de concordar; por representar pouco mais do que a soma de diferentes modelos conceptuais já conhecidos, e até defendidos por organizações internacionais como a UE ou a OCDE. Concedo que seja difícil discordar-se do conteúdo do documento, mas não concordo que o mesmo seja irrelevante. Muito pelo contrário.
Quando, em 1986, a Assembleia da República procurou fazer a discussão pública dos diversos projetos de Lei de Bases do Sistema Educativo, o maior problema que encontrou foi o total desinteresse dos media pelo assunto. Houve centenas de sessões oficiais em todo o país, mas os media e a população em geral passaram largamente ao lado da discussão. No entanto, é hoje reconhecido por todos o papel estruturante que a Lei de Bases do Sistema Educativo teve nas políticas educativas dos 30 anos que se lhe seguiram.
O “perfil do aluno” não é uma lei de bases. Mas pode ser um importante documento de orientação das políticas educativas nos próximos 30 anos. Ao tornar claro o que desejamos para os alunos no final da escolaridade obrigatória, podemos redesenhar o modo de lá chegar sem estar a fazer remendos em pano roto. É que o perfil do aluno para o século XXI não é compaginável com a escola do século XIX. Não é possível educar para a complexidade e a diversidade numa organização burocratizada e homogeneizada onde o mérito é ultrapassado pela antiguidade, a diversificação pela “regrazinha” e as decisões estratégicas são tomadas em função dos equilíbrios corporativos do momento. A escola do século XXI não existirá enquanto os seus profissionais forem recrutados sem qualquer consideração pelas suas competências específicas, a sua remuneração for igual seja o que for que fizerem (ou não fizerem) e a sua carreira for gerida sem qualquer consideração pelo mérito. Temos de alterar radicalmente as regras de acesso à formação inicial de professores (que tal um pré-requisito para todos de pelo menos 13 a matemática A, português, filosofia e ciências no final do ensino secundário?), as regras de contratação (pelas escolas) e a regras de remuneração do trabalho. A escola do século XXI não existirá enquanto as lideranças das escolas não puderem fazer opções pedagógicas de fundo nem tiverem liberdade para “organizar a casa”. Temos de defender e aprofundar o regime de administração escolar, dando mais poderes aos órgãos internos da escola dentro de um quadro de participação ativa e de responsabilização dos seus profissionais. O perfil do aluno para o século XXI exige uma escola do século XXI.
Por isto, a discussão não é irrelevante nem estéril. Pelo contrário, o terreno é fértil para que de uma ampla discussão possam surgir as melhores soluções. Um documento desta natureza, consensualizado e aceite, permitirá reconstruir o sistema educativo, tal como fizemos após 1986 em cumprimento da Lei de Bases. E esta reconstrução é fundamental porque o sistema educativo português está hoje bloqueado e sequestrado por um tempo que não se coaduna com as exigências e dinâmicas da sociedade atual. A Lei de Bases de 1986 serviu bem o objetivo de democratização do acesso ao ensino, mas temos hoje provas sobejas de que a esse acesso não corresponderam condições de sucesso.
O desafio é que todos contribuam e estejam à altura das suas responsabilidades. Quem propõe este caminho deverá procurar consensos e assumir todas as consequências da proposta; quem hoje está na oposição mas terá, no futuro, de lhe dar continuidade, deverá participar e aceitar a continuidade do percurso que vier a ser definido. Vai ser interessante acompanhar a vida do documento “Perfil do aluno para o século XXI”. Só há duas hipóteses: ou é o início de um novo compromisso social em torno da educação ou será pouco mais que um texto preambular de mais uma alteração curricular.
Creio que o compromisso é possível, mas temo que a polarização em que vivemos e as vistas curtas de alguns o venham a inviabilizar. E se conseguirmos construir este consenso em torno do perfil dos alunos no final da escolaridade obrigatória, o documento final deve ter força vinculativa. Reforçada se possível.
Diretor executivo da AEEP e professor universitário
‘Caderno de Apontamentos’ é uma coluna que, às quintas-feiras, discute temas relacionados com a Educação, através de um autor convidado.