Existe, em Portugal, uma tendência que visceralmente abomina a tauromaquia, mas estranhamente promove um multiculturalismo que faz crescer no nosso país um tema atualmente em debate por toda a europa: os abates religiosos de animais para consumo humano. As touradas fazem hoje ainda parte das expressões culturais proibidas pela pandemia da Covid-19, mas os abates religiosos não. Se por um lado os animais envolvidos nas touradas são transportados para os matadouros sendo insensibilizados previamente ao abate, dentro das normas de bem-estar animal europeias, os animais em crescente número destinados aos abates religiosos, não o são. Estes animais, são abatidos ao abrigo de uma derrogação dessa salvaguarda de bem-estar animal, sem insensibilização prévia. Bem-estar animal esse, conseguido na Europa no século passado pela “Convenção Europeia para a Proteção de Animais em Abate”.
Sabemos o que são as corridas de touros à portuguesa, onde é proibido matar os animais a sangue frio. Mas sabemos o que são estes abates religiosos Zibh e Kosher?
Uma rápida pesquisa mostra, de imediato, muitos resultados nacionais para “talho halal”. Chamam-se assim, estes talhos, porque a carne neles vendida obedece a rituais de abate que já estão proibidos em 7 países da Europa, e que são: a de que o animal não pode ser enfraquecido mantendo a consciência no abate, a de ser obrigatório o abate manual do animal com um único corte jugular e a de ser dessangrado ou exangue até à sua morte “natural”. O abate de animais zibh assenta na prerrogativa que para os muçulmanos os animais lícitos de serem consumidos têm de passar por este processo de abate específico, para que a sua carne venha a ser considerada halal. Este processo engloba várias condições referentes não só à forma do abate, mas também ao tratamento do animal antes e após o abate. Não se deve arrancar ou cortar totalmente a cabeça ao abater o animal, até que o animal deixe fazer qualquer tipo de movimento. Com o cumprimento destes requisitos, deve manter-se ainda o cuidado de que a carne halal não seja nunca misturada com carne haram (ilícita), pois qualquer tipo de mistura irá tornar a carne mashkuk (duvidosa), sendo fortemente recomendada a abstinência ao seu consumo.
Já o abate hebraico kosher ou kasher, que significa “bom” e “próprio”, é utilizado para designar alimentos preparados de acordo com as leis judaicas de alimentação, denominadas kashrut. Os animais são, também, degolados estando conscientes e sem insensibilização, executando-se um golpe rápido que promove o sangramento do animal até à perda de consciência e morte “natural”. A degola é feita pelo corte das artérias carótidas e das veias jugulares, sem atingir as vértebras cervicais. Apenas uma pessoa treinada, denominada shochet, estará apta a realizar este ritual.
Ao abrigo de uma excepção, estes abates religiosos sem insensibilização prévia são legais em Portugal, bem como em alguns países europeus.
Em Portugal, as normas europeias e nacionais de bem-estar animal relativas à proteção dos animais, obrigam os matadouros a insensibilizar, previamente ao abate, todos os animais por uma técnica anestesiante que leve à perda definitiva de consciência e de total sensibilidade. Esta insensibilização é feita principalmente por dois métodos: a eletronarcose e a pistola de embolo retrátil. Ainda que existam outras possibilidades autorizadas como a concussão e a exposição do dióxido de carbono. Esta disposição de bem-estar animal assenta na “Convenção Europeia para a Proteção de Animais em Abate” que remonta a 1979. Muito porque as últimas décadas do século passado assistiram ao começo de uma maior regulação legal das questões relacionadas com o bem-estar animal, deixando essa matéria de depender apenas do entendimento arbitrário dos agentes intervenientes.
No entanto, mais próximo do fim desse século XX, os países europeus da UE aprovaram uma derrogação à obrigação de insensibilizar todos os animais nos matadouros em caso de se tratarem de abates de ritual religioso: “2. As exigências previstas na alínea c) do n.º 1 não se aplicam aos animais que são objecto de métodos especiais de abate requeridos por determinados ritos religiosos.”(ponto 2, Artigo 5 da Directiva 93/119/EC do Conselho de 22 de Dezembro).
Os abates ao abrigo desta derrogação, continuaram desde 2009 até hoje, ao abrigo do novo Regulamento (CE) n.º 1099/2009 de 24 de set., ainda em vigor, e existem agora cada vez com mais expressão. As comunidades religiosas muçulmanas e hebraicas promovem hoje em Portugal abates de animais sem a devida insensibilização e sem antes usarem qualquer uma das técnica anestesiantes dispostas na Lei, ao abrigo desta derrogação às leis de protecção e bem-estar animal? Ao contrário de todas as estatísticas relativas à tauromaquia, estes dados não estão publicados pela tutela competente do bem-estar animal e pelos abates, que é o Ministério da Agricultura, mais especificamente a Direcção-Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV).
Será que esta realidade se apresenta agora, em Portugal, como um dilema ético entre o bem-estar animal e os direitos culturais ou a liberdade religiosa?
Em Portugal, não sabemos oficialmente qual a expressão destes abates. No entanto, a presença multicultural de consumidores deste bem alimentar é cada vez maior, bem como é maior o número de estabelecimentos comerciais que vendem estes bens alimentares. Suponho que os meus colegas médicos-veterinários inspectores sanitários também mantêm um sentimento generalizado e unânime da salvaguarda do bem-estar animal em todos os abates, e sejam favoráveis ao intrínseco cumprimento da referida Convenção de Proteção dos Animais em Abate. Acontece, agora, que esta realidade parece começar a ter maior expressão nacional, o que não acontecia antes.
Não se trata de pedir uma proibição do abate com preceito religioso ou uma perseguição de fé, mas sim de querer fazer valer normas de bem-estar animal que previnem o sofrimento na morte. Isto, porque mesmo que se sigam as regras usando uma lâmina muito afiada e tudo o que mandam essas tradições religiosas, o animal vai sempre sofrer pois não está insensibilizado.
No contraditório, as várias comunidades culturais dizem que este assunto “está na agenda islamofóbica na Europa. Essas pessoas passaram, também, a visar as organizações judaicas. Penso que muçulmanos e judeus devem queixar-se, juntos, na justiça“, afirmou Mustapha Chairi, presidente do Coletivo Contra a Islamofobia na Bélgica. Também é comumente argumentado que o verdadeiro móbil de querer reverter a derrogação que permite estes abates não é mais que uma medida anti-imigração. São argumentos que não procedem em toda a linha. Ou será que a tendência opositora touradas também pode ser denominada de “lusitanofóbica”?
Por parte das empresas detentoras dos centros de abate e desmancha parece existir alguma heterogeneidade de opiniões, pois existem empresas que não aceitam fazer estes abates e outras que olham para o assunto como uma nova oportunidade de negócio. Um negócio com a exportação na mira de um produto com mais valor, cerca de 20% mais caro ao consumidor à medida que mais países vão proibindo estes abates na Europa. É, também, um processo de produção em que poderão poupar salários e equipamentos, uma vez que a degola é feita pelo representante religioso e não existe o passo material de insensibilização na cadeia de abate. Além de ser uma carne que todos podem consumir, se não apresentarem objecção de consciência ao tipo de abate. Mas como pode uma consciência consumidora objetar o que não se compreende? Primeiro, não se exige que a carne destes animais não insensibilizados seja expressamente rotulada como tal e, embora tenham sido feitas propostas na UE para a rotulagem obrigatória, foram descartadas. Segundo, porque aparece rotulado apenas a designação halal ou kosher, o que para a maioria dos consumidores não deve dizer nada, não ligando essas denominações à ausência de tais procedimentos de bem-estar.
Portanto, se ninguém assiste a uma tourada inadvertidamente, qualquer consumidor menos informado pode levar para casa, sem ter a perfeita noção de tal, uns bifes, umas codornizes ou até um peito de frango de animais que agonizaram conscientemente até à morte, sangrando por degolação.
E o que se passa nos países europeus?
Atualmente, já 7 países europeus não permitem quaisquer excepções à insensibilização dos animais antes do abate por proteção ao bem-estar animal, são eles: a Bélgica, a Dinamarca, a Eslovénia, a Islândia, a Noruega, a Suécia e a Suíça. O Lichtenstein também exige atordoamento prévio, excepto para aves. A Finlândia requer uma sedação simultânea.
Já nos outros países europeus existe, desde há alguns anos, uma grande pressão pública para não deixar este tipo de abates proliferarem e até mesmo para proibi-los. São comuns os manifestos e as petições, tanto por parte dos profissionais sanitários e de saúde animal, como por parte de vários sectores da sociedade.
Por exemplo, atualmente no Reino Unido, a British Veterinary Association (BVA) uniu-se à Royal Society for the Prevention of Cruelty to Animals (RSPCA) para pedir que o governo siga a liderança da Bélgica e proíba, também, todos os abates sem insensibilização. Justifica este facto com os dados publicados pela Food Standards Agency (FSA) — estes mostram que, naquele país, mais de 94 milhões de animais foram abatidos sem atordoamento no ano de 2018. De facto, na Bélgica, desde 1 de setembro de 2019, ficou proibido o abate de animais para consumo que não recorra, previamente, a insensibilização, para que não sintam dor. Assim, na Bélgica, com uma população de 11 milhões bastante multiculturais, foi retirada esta exceção ao bem-estar animal para os abates com ritos religiosos nas três regiões administrativas.
Também a Dinamarca baniu a carne halal, já em 2014, por pressão da opinião pública e para tal muito contribuiu a disseminação de imagens de vídeo captadas em matadouros desse país, que mostravam a forma de como se procediam esses abates.
Na Holanda, a proibição está em debate no parlamento e, ao que tudo indica, outros países devem adotar o debate para a mesma medida, em breve.
Nos relatórios internacionais, Portugal aparece como permissivo a este tipo de abates. Se por um lado não há legislação nacional que retire força de lei à derrogação da directiva europeia em vigor, por outro lado a DGAV não publica os dados oficiais de abates pelo que a informação fica sempre omissa.
É verdade que métodos judaicos e islâmicos de abate se desenvolveram ao longo dos séculos, em parte, também para proporcionar um método seguro de matar e que minimizava o sofrimento do animal. Mas as ciências médico-veterinárias demonstram que existem contemporaneamente métodos para este fim que são superiormente eficazes, e esses são métodos que devem ser obrigatórios no nosso país para se atingir o objectivo que esteve na génese do desenvolvimento dos preceitos religiosos desses abates: minimizar o sofrimento do animal no preciso momento do seu abate.
Já no séc. XIX, a Rainha D. Maria II promulgou a lei de Passos Manuel que decretava a proibição definitiva da morte a sangue frio dos touros nas arenas (1836). Hoje, seria também de enorme importância que, no nosso país, existisse uma discussão de como podemos conciliar os abates religiosos com uma total preservação do bem-estar animal, assegurando que a morte nos nossos matadouros ocorra sempre, em qualquer espécie animal, de forma tão rápida quanto indolor. Bem como assegurar a liberdade de religião, que é um direito fundamental do ser humano, sendo a tolerância religiosa a prova de que a nossa sociedade é democrática e verdadeiramente livre.