1. Há cerca de um ano, talvez mais, numa das minhas muito frequentes (graças a Deus) idas á Madeira, dei por uma mudança, ou melhor, uma mudancinha no ar: começava a ouvir dizer-se em vários círculos que o PSD estaria doente, a governação doentíssima, era questão de meses, era só chegar ás eleições legislativas ( na altura ainda nem sequer marcadas). Sucede porém que se ouvia dizer isto, como dizer? de forma algo diferente dos outros (longos) anos atrás. Onde, recorde-se, eleição após eleição, Jardim era o dono daquilo tudo, o PS parecia um postal desbotado e o resto mal existia. Desta vez não. Desta vez o rumor surgia alicerçado na figura de um ex-professor liceal, o independente Paulo Cafofo, a quem uma coligação de diversos partidos de esquerda ou centro-esquerda pusera –proeza – por duas vezes na presidência da Câmara Municipal do Funchal – à segunda, por maioria absoluta – contra o candidato apoiado pelo PSD. Uma dupla vitória autárquica que inspirou o PS a convidar Paulo Cafofo para voar mais alto e levar consigo na asa desse voo, a família socialista, até aí pouco apta a voos de grande alcance.

Para encurtar uma longa história, e após meses de lutas internas, hesitações e negociações, a direcção do PS/M decidiu-se: o candidato à chefia do governo pelo PS era Cafofo e não o seu líder, Emanuel Câmara – uma estreia na vida desta família política. Cafofo convencia, Cafofo encantava: era determinado, persistente, popular. Daqui à “verosimilhança” de um combate político entre o poder e a oposição – e não um simulacro disso – foi um passo. E um ganho, claro. Pela primeira vez em décadas (décadas, digo bem) faziam-se apostas com o olhar nas eleições do outono de 2019. Tudo isto coincidia ainda para mais, com uma “baixa de tensão” governamental de Miguel Albuquerque, na chefia de um governo que então parecia nem atar nem desatar.

2. Como nada disto era coisa pouca, pedi para conhecer Paulo Cafofo. Queria ser a primeira a dar nota nacional de uma possível mudança política onde se misturaria o fim do longo império jardinista e o início de uma inédita aventura política com a esquerda no poder. É que ali, uma (trivialmente) democrática alternância de poder, poderia assumir foros de quase terramoto. Havia que estar atento. Tanto mais que o Largo do Rato se empenhava ao máximo (era a flor que faltava a Costa) exportando estratégia, conselheiros e meios para a Madeira e para o regaço de um independente.

Encontrei-me com Paulo Cafofo no edifício da Câmara Municipal: foi de imediato simpático, confiante, prolixo. Possuía uma retórica desenvolta, elencou ideias e metas, insistiu na “proximidade” como grande instrumento político (“queria ter o cidadão no centro das suas preocupações e prioridades se chegasse ao governo”) enquanto na ilha ia praticando com leveza o milagre da omnipresença.

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E no entanto… quem o ouvisse debitar com velocidade tantas medidas como se elas estivessem inscritas numa folha de excel e fosse só seguir a lista, podia legitimamente interrogar-se: seria tudo assim tão simples? Tão fluído e tão fácil? O resultado desta conversa – como aliás ocorreria com a do Presidente do Governo, realizada dias depois – surgiu aqui mesmo no Observador, no final de 2018 mas de então para cá muita água correria ainda sob estas duas moradas políticas: Governo Regional e Câmara Municipal – Albuquerque/Cafofo.

3. Pouco tempo depois avistei-me com Miguel Albuquerque, na Quinta da Vigia. A conversa que ia surgindo meia rotineira – o governo isto, o governo aquilo – ganhou de repente forma e fôlego: foi quando lhe disse que no PS “de Lisboa” era vox populi a sua derrota daí uns meses. Faziam-se apostas, Cafofo era antecipadamente dado como vencedor e grande depositário das esperanças de António Costa de passar ele –Costa – a nacional dono disto tudo. “Ah dizem? Dizem isso, é?” O olhar fixou-se-lhe nalgum misterioso ponto longe dali, endireitou.se na cadeira, fechou o rosto. “Vão ver…” Subitamente estava ali o guerrilheiro político de sempre – instintivo, lutador, impaciente e sem grande hábito da derrota – sobrepondo-se completamente ao chefe do governo que Miguel Albuquerque também era, naquele lugar e naquela tarde. Saí dali com a convicção que igualmente ali alguma coisa iria mudar (apesar de não excluir na minha análise, a possibilidade de um enjoo da cor alaranjada que há décadas (décadas, repito) tingia a ilha.

4. Meses depois a campanha eleitoral para as europeias trouxe surpresa e desconsolo: Paulo Cafofo perdia, o guerrilheiro Albuquerque ganhava. O primeiro talvez tivesse confiado de mais, o outro, partiu para a guerra que é o que ele sabe fazer. E, entretanto, uma salvífica remodelação ministerial que trouxera Pedro Calado para a vice-presidência, com as pastas da Economia, Finanças e Transportes, animou hostes e levantou ânimos: o governo passou de sofrível a bom – e nunca será demais sublinhar, nessa subida de rating, a entrada em acção do experiente e paciente Pedro Calado. As expectativas inverteram-se, a balança eleitoral também: na última visita à Madeira, no verão deste ano, já não era Cafofo que ganharia as legislativas do outono de 2019 mas sim Miguel Albuquerque, só que desta feita “com uma grande descida de votos”. O sissó da política não gosta de parar.

5. Domingo à noite começou-se por não se saber bem o que pensar sobre a discrepância entre o eco televisivo nacional e a realidade eleitoral madeirense. De início quase foi uma festa com Marques Mendes a dar o tom, como se o independente Paulo Cafofo tivesse tido a maioria absoluta dos votos do arquipélago, e o PSD obtido mais ou menos 11%; depois, mais focada na realidade, a ilusão foi-se dissipando dos écrans: é que afinal o PSD e Miguel Albuquerque contabilizaram os mesmíssimos votos de 2015 – e nesse sentido o chefe do governo não é um derrotado; e Paulo Cafofo, à conta da vertiginosa bipolarização praticada, fez sumir o Bloco e o PC dos radares eleitorais, triplicando assim o score do PS e nesse sentido é um vencedor. Já se sabe? Já mas… pelo sim pelo não, relembram-se estes números e estes factos. E também esta coisa extraordinária: sempre ou quase sempre que a direita ou o centro ganham, é sempre ou quase sempre como se não ganhassem, é uma cultura.

E a propósito, que dizer do receio mal disfarçada do PS de não vir a ter a maioria absoluta nas legislativas de dia 6 e o sonoro alivio manifestado pelo mesmo PS, por a Madeira se ter livrado dessa praga horrível? Desse mal tão nefasto? Sim, é a cultura democrática deles.

(Estamos entendidos com o que poderá vir ocorrer com os candidatos a donos de “tudo” se alguém se distrair a votar daqui a uns dias.)

6. E agora na Madeira e em Porto Santo a vida segue as regras da democracia e a democracia seguirá as regras do bom comportamento cívico e político: vai haver uma coligação PSD /CDS no governo. E no parlamento haverá finalmente – já não era sem tempo – combate político digno desse nome. E poder e oposição.