Isabel Moreira devia conhecer esta história. Na década de 50, Fanny Rosenow e Teresa Lasser tiveram cancro da mama e, depois de serem submetidas a “mastectomias radicais”, sobreviveram. Durante esse doloroso processo, trocaram confissões e receios e perceberam que havia algo de terrivelmente errado: as mulheres que estavam na mesma situação que elas não tinham apoio, nem ajuda — perdidas entre o choque e a confusão da doença, ninguém as guiava, ou informava, ou consolava. Em vez de seguirem em frente, Fanny Rosenow e Teresa Lasser voltaram atrás, para ajudarem quem veio depois: criaram um grupo de apoio para mulheres com cancro da mama, que se tornaria numa das principais instituições na sua área. E perceberam imediatamente que o primeiro passo para quebrar o vazio era mostrarem que existiam. Por isso, decidiram colocar um anúncio no The New York Times, o jornal mais lido e respeitado dos Estados Unidos. Quando Fanny telefonou para o departamento comercial, já com o cheque pronto para ser assinado, transferiram misteriosamente a chamada para um editor de Sociedade. Ao fim de uns segundos, ele explicou-lhe o que se passava: “Lamento, senhora Rosenow, mas o Times não pode publicar nas suas páginas a palavra ‘mama’ nem a palavra ‘cancro’. Talvez possa pôr no anúncio que se trata de um encontro sobre doenças da parede torácica”.
E assim Fanny percebeu como um misto de moralismo e paternalismo criara um denso silêncio que contribuiu para o sofrimento e morte de muitas mulheres. O raciocínio de quem decidia o que podia ou não ser publicado num jornal era simples e implacável: não era aceitável escrever a palavra “mama” porque ela remetia para a sexualidade; e as mulheres sérias, nos anos 50, não podiam ser vistas como estando associadas a desejos sexuais. Por isso, em vez de se falar abertamente de uma doença que por acaso era designada pela palavra “mama”, e assim ajudar e salvar milhões de mulheres, preferia-se esconder a palavra — e, escondendo a palavra, esconder a doença também.
De forma involuntária, a sociedade dos anos 50 criara um beco sem saída: os homens, que dominavam a linguagem, não se queixavam porque não sofriam da doença; e as mulheres, que sofriam da doença, não se podiam queixar porque não dominavam a linguagem.
Hoje, a palavra “mama” é tão comum que pode aparecer em qualquer jornal de paróquia sem provocar escândalo ou repulsa. E as mulheres, felizmente, já partilham com os homens o domínio da linguagem. Mas continua a haver palavras que não se podem escrever, nem dizer. Nem, aliás, pensar. Por exemplo: “princesa”.
De certeza que já perceberam onde é que eu quero chegar. O Bloco de Esquerda, a deputada do PS Isabel Moreira e vários grupos feministas ficaram chocadíssimos com a utilização da palavra “princesa” na campanha do Governo que pretende combater o aumento de consumo de tabaco entre as mulheres, um dos grandes problemas de saúde pública da atualidade. Segundo parece, a filha da fumadora que aparece no filme publicitário é vítima de um terrível estereótipo, “uma vez que a menina é vista como uma princesa”.
É uma mudança tristemente irónica. Nos anos 50, os americanos não conseguiam ser suficientemente literais: para eles, uma “mama” era um apelo à pornografia, não era só uma parte do corpo. Em 2018, as novas activistas do feminismo são excessivamente literais: para elas, uma “princesa” é apenas a mulher que casou com um príncipe.
Na realidade, como todos sabemos, uma “princesa” não é apenas e só isso — aliás, no dia a dia dos portugueses, não é mesmo nada disso. Quando uma mãe trata a filha por “princesa” não está a dizer: “Tens de casar com um homem que tenha uma coroa e que te sustente até ao fim da tua vida”. O que ela está a dizer é: “Tu és capaz de ser tudo o que quiseres e não há ninguém superior a ti, nem mesmo as princesas, porque tu já és uma princesa”.
Uma pessoa escreve isto e cora de vergonha porque percebe que chegámos a um ponto em que é preciso explicar o óbvio. Não por uma questão de burrice: as novas activistas do feminismo sabem muito bem o que quer dizer a palavra “princesa” para as mães portuguesas. Simplesmente, isso não lhes importa porque a política está à frente de tudo. Um dos seus nichos eleitorais é a igualdade de género e, portanto, vão descobrir problemas de igualdade de género em todo o lado — mesmo onde eles não existem.
As novas activistas do feminismo estão a usar uma velha táctica totalitária que sempre serviu para acelerar rupturas de comportamento nas sociedades. Basta ler o “1984”, de George Orwell. Primeiro, elas apropriam-se das palavras; depois, dão a si próprias o poder de decidir o que essas palavras querem dizer; por fim, decretam quais são as palavras aceitáveis e quais são as palavras que devem levar ao exílio social quem tiver a ousadia de as usar. Nunca nos devemos esquecer: quem domina as palavras, domina a política; e quem domina o discurso público, domina as pessoas.
Numa fase inicial, algumas dessas pessoas questionam e argumentam, tentando contrariar o exercício de distorção da linguagem, como eu estou a fazer aqui. Mas, ao fim de algum tempo, cedem e conformam-se, para não arranjarem problemas ou chatices.
Nos anos 50, as mulheres eram vítimas de homens que não as queriam ouvir; hoje, são vítimas de mulheres que também não as querem ouvir. Tal como acontecia com os velhos moralistas, as novas activistas do feminismo não pretendem escutar as mulheres — pretendem mudá-las, moldá-las, reeducá-las. A bem ou, se necessário, a mal.
P.S.: A história de Fanny Rosenow está contada no livro “The Emperor of All Maladies — A Biography of Cancer”, de Siddharta Mukherjee.