Pela Constituição apostólica Pascite gregem Dei, de 1 de Junho, o Papa Francisco reformou o Código de Direito Canónico. Graças a esta reforma do direito penal da Igreja católica, não só foi criada uma secção de delitos contra a vida, a dignidade e a liberdade humana, como também foram agravadas as penas previstas para alguns crimes particularmente escandalosos.

Muito embora a Inquisição e o Santo Ofício, cujos métodos repugnam à nossa sensibilidade, tenham passado à história, a Igreja, como qualquer organização, não pode prescindir de um ordenamento jurídico que, nas suas normas penais, sancione as más práticas dos seus fiéis.

Para além dos crimes cometidos contra a fé, como a heresia e a apostasia, a Igreja também pune os delitos contra a comunhão eclesial, como o cisma e a desobediência grave à legítima autoridade pastoral, como a ordenação episcopal sem mandato pontifício, que levou à excomunhão do Mons. Marcel Lefebvre. Agora, graças à reforma do Papa Francisco,crimes como a tentativa de ordenação de mulheres, a consagração da Eucaristia para fins sacrílegos e a gravação de confissões, que tinham sido já tipificados em leis especiais, foram incorporados no Código de Direito Canónico.

A Igreja também pune os delitos contra a moral, por vezes até com a pena máxima: a excomunhão. Assim, quem realizar, consciente e voluntariamente, um aborto, fica imediatamente excomungado: não apenas impedido de receber a comunhão eucarística, mas também expulso da comunhão católica, ou seja, da Igreja, embora a ela possa sempre regressar, se se converter e emendar.

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Os crimes de abuso de menores sempre foram punidos pela Igreja, tendo em conta a severíssima condenação que os mesmos mereceram do próprio Cristo: “se alguém escandalizar um destes pequeninos que crêem em mim, melhor seria para ele atarem-lhe ao pescoço uma dessas mós que são movidas pelos jumentos, e lançarem-no ao mar” (Mc 9, 42). Contudo, estes delitos não estavam adequadamente sancionados no vigente Código de Direito Canónico. Para suprir esta deficiência, os Papas São João Paulo II, Bento XVI e Francisco foram muito enérgicos na punição destes casos. Graças a esta sua atitude, parecem erradicados os abusos de menores por membros do clero católico, pelo menos na escala anteriormente verificada. Agora, qualquer sacerdote que seja acusado de actos pedófilos, não só é entregue, pelas autoridades eclesiais, à justiça civil – a única que dispõe de estabelecimentos penitenciários – como é demitido, ou pelo menos suspenso, da condição sacerdotal.

Não obstante a superação desta dolorosa crise, esta traumática experiência obrigou à pertinente reforma do direito penal da Igreja, para que as sanções já aplicadas em casos pontuais – recorde-se que o ex-Arcebispo de Washington DC, Theodore McCarrick, foi destituído da sua condição cardinalícia, episcopal e sacerdotal – estejam integradas no ordenamento jurídico canónico.

A lei da Igreja foi revista “especialmente no que diz respeito aos aspectos fundamentais do direito penal, como o direito de defesa, a prescrição da ação penal e uma determinação mais precisa da punição”, com “critérios objetivos na identificação da sanção mais apropriada a ser aplicada ao caso concreto”. Esta nova redação pretende diminuir a margem de discricionariedade da autoridade eclesial, a fim de favorecer a unidade da Igreja na execução penal, sobretudo nos crimes que causam maiores danos e escândalo na comunidade. Neste sentido, a pornografia infantil foi agora incluída na lista dos mais graves crimes, os ‘delicta graviora’.

Como o Secretário do Pontifício Conselho para os Textos Legislativos, D. Juan Ignacio Arrieta, esclareceu, as reformas agora introduzidas “determinam com mais precisão o comportamento que as autoridades, nomeadamente os bispos e os superiores dos institutos religiosos, devem observar ao aplicar a norma penal, e quais os critérios a seguir na escolha de uma ou outra pena: trata-se, portanto, de uma maior determinação do direito penal (…) O direito penal também é importante para preservar a comunidade dos fiéis, reparando o escândalo causado e, portanto, também reparando os danos. Um terceiro aspecto é o de proporcionar à autoridade instrumentos de prevenção destes crimes, impedir as condutas delitivas e evitar os danos a que o Papa se refere na constituição apostólica”.

Com efeito, segundo o Papa Francisco, “muitos danos foram causados pela incapacidade de se perceber a relação íntima, existente na Igreja, entre o exercício da caridade e o recurso à disciplina das sanções, onde as circunstâncias e a justiça o exigem”. A reforma agora introduzida obedece ao princípio de que não pode haver perdão sem correcção: ou seja, o prevaricador deve responder pelos seus actos e ser responsabilizado pelas suas consequências. A caridade, que a Igreja pratica como mandamento novo de Cristo, não pode servir de pretexto para a injustiça: não só não se opõe à justiça, como a pressupõe. Uma caridade que protegesse o criminoso e deixasse indefesas as vítimas não seria humana, nem muito menos cristã. Pelo contrário, a correcção, por via penal, do infractor é uma manifestação de caridade para com as vítimas, bem como para o delinquente, sobretudo se tal for necessário para a sua emenda, reabilitação eclesial e salvação eterna, que é o fim a que tende o direito da Igreja.

Segundo declarações à Vatican News do Arcebispo Filippo Iannone, Presidente do Conselho Pontifício para os Textos Legislativos, graças a esta reforma, “foram previstas novas sanções, tais como multas, indemnização por danos, privação de toda ou parte da remuneração eclesiástica, de acordo com as regras já estabelecidas por diversas Conferências Episcopais (…). No que respeita à legislação sobre abusos contra menores, há uma novidade: é destacada a gravidade destes crimes e também que a prioridade deve ser dada às vítimas (…)”. Infelizmente, algumas autoridades diocesanas, em vez de se colocarem do lado das vítimas, como era sua obrigação, por um elementar dever de justiça, beneficiaram por vezes os prevaricadores, não só favorecendo a sua impunidade, como facilitando até a sua reincidência nestes crimes, por via da transferência para outras paróquias. As alterações agora aprovadas procuram dar mais atenção à prevenção destes crimes, à reparação do escândalo e à indemnização dos danos.

Foi também introduzido o crime de abuso contra menores cometido por membros de institutos de vida consagrada e por outros fiéis. Como é sabido, a grande maioria destes crimes são praticados por leigos: o número de treinadores desportivos e professores pedófilos, nos Estados Unidos da América, é cem vezes superior ao dos padres condenados por este crime. Foi também alterado o prazo de prescrição destes crimes, a fim de favorecer a conclusão dos processos num tempo razoável.

A actual reforma também introduziu novos crimes económico-financeiros ou patrimoniais, para os quais estão estabelecidas várias penas, que não estavam previstas na redação original do Código de Direito Canónico, como multas, indemnizações por danos e a privação, total ou parcial, da remuneração.

A reforma dos cânones 1311 a 1399, do Livro VI do Código de Direito Canónico, sobre as “sanções penais na Igreja”, entra em vigor a 8 de Dezembro de 2021, solenidade da Imaculada Conceição de Maria, Rainha e Padroeira de Portugal. Bom seria que todos os Estados seguissem este exemplo na defesa das crianças, cujos anjos, no Céu, vêem constantemente a face de Deus (Mt 18, 10).