1 Depois da suspeita, a confirmação: Fernando Medina veio reconhecer que a Câmara Municipal de Lisboa cometeu mesmo um “erro lamentável”, tendo transmitido às autoridades russas os dados pessoais de três manifestantes que, em Janeiro transato, participaram numa ação de solidariedade e protesto pela libertação de Alexei Navalny; nada mais nada menos do que o principal rosto da oposição ao regime político de Vladimir Putin.

A falha, segundo o autarca socialista, ficou a dever-se ao “funcionamento burocrático dos serviços”, os quais terão indevidamente aplicado, in casu, aquele que era o procedimento pré-estabelecido para a generalidade das manifestações que se realizavam na capital. Passamos a explicar: sempre que um determinado grupo de pessoas pretendesse levar a cabo uma reunião, comício, manifestação ou desfile, num espaço público ou aberto ao público, integrado na sua área territorial de competências, impunha a Câmara – como, de resto, o artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 406/74, de 29 de Agosto, expressamente obriga – que essa intenção lhe fosse comunicada por escrito, com uma antecedência mínima de dois dias úteis, por meio de um aviso assinado por três dos promotores do evento, devidamente identificados pelos respetivos nomes, profissões e moradas. Até aqui, tudo bem.

O problema surgia, porém, numa segunda fase. É que, após rececionar as sobreditas comunicações, a Câmara não se limitava a tratar as informações delas constantes no seu circuito interno. Pelo contrário: a praxis dos serviços municipais, ao que tudo indica, era a de reencaminhar os dados recebidos, via correio eletrónico, não só para a Polícia de Segurança Pública e para o Ministério da Administração Interna, como também para as demais entidades junto às quais cada reunião, comício, manifestação ou desfile viesse concretamente a ter lugar – como foi o caso da embaixada da Rússia, no âmbito da famigerada “Concentração em Solidariedade com Alexei Navalny e apelo à sua libertação imediata”.

2 Juridicamente falando, com efeito, não parecem sobrar grandes dúvidas: a Câmara violou, de forma grosseira, a legislação europeia e nacional aplicável em matéria de proteção de dados pessoais. E fê-lo, desde logo, porque transmitiu a terceiros informações relativas a pessoas singulares, inequivocamente identificadas, sem que estivesse vinculada a qualquer obrigação nesse sentido, ou tão-pouco dispusesse de outro título habilitante – v.g., o consentimento dos indivíduos em causa – suscetível de legitimar essa transferência.

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Sucede que, se tal já seria por si só grave em circunstâncias normais, no caso vertente, contudo, o incidente adquire contornos de especial perversidade. Afinal, cumpre ter presente que os dados transmitidos pela Câmara não foram dados quaisquer, mas antes, informações que permitiam inferir o posicionamento político dos correspetivos titulares face a uma problemática tão sensível como é aquela que opõe Alexei Navalny à Federação Russa.

Dito de outro modo: ao comunicar os dados pessoais em questão, a Câmara não se limitou a divulgar o nome, a profissão e a morada das pessoas visadas a alguém que não devia ter acesso a essas informações. Antes sinalizou as pessoas em causa como potenciais inimigas de um regime que, cada vez mais, apresenta traços manifestamente antidemocráticos – com todos os riscos daí decorrentes, para a sua segurança e dos seus familiares.

Acresce que, ainda que as pessoas diretamente afetadas pela citada comunicação de dados não venham a sofrer qualquer outra consequência para além das até então conhecidas, ponto é, que o simples facto de estas terem sido politicamente referenciadas, nos termos anteriormente explicados, funcionará, por decerto, como um deplorável aviso à navegação para todos aqueles que pretendam exercer as respetivas liberdades de expressão e manifestação, sem o receio de sofrer consequências indesejáveis. Algo que, diga-se, não pode deixar de gerar preocupação, no quadro de uma sociedade que se arroga democrática.

3 Todo este lamentável incidente demonstra, pois, que o direito à proteção de dados pessoais não pode – nem deve! – continuar a ser perspetivado como um instituto de importância reduzida ao universo das relações entre cidadãos e entidades privadas. Afinal, se não se nega que, hoje, o Estado já não é o único – ou sequer o principal – agressor das posições jurídico-subjetivas cometidas a cada ser humano neste específico domínio, a verdade é que, nem por isso o tratamento de informações relativas a pessoas singulares identificadas ou identificáveis, por parte da administração pública, configura uma atividade isenta de riscos. Riscos esses tão ou mais relevantes, na medida em que, na maioria das vezes, fruto do desequilíbrio de forças existente entre poderes públicos e particulares, não resta a estes últimos outra alternativa senão fornecer os dados que o Estado exige, para os fins que o Estado determina, de acordo com as regras que o Estado estabelece.

Assim sendo, espera-se da Comissão Nacional de Proteção de Dados uma posição de força, sob pena do disposto na Constituição da República Portuguesa (artigo 35.º) e na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (artigo 8.º) se tornar em letra morta e a proteção teoreticamente conferida a cada pessoa, contra o tratamento indevido de quaisquer informações que lhe digam respeito, não passar, no final do dia, de uma mera ilusão.

Quanto a eventuais responsabilidades políticas a assacar pelo sucedido – muito particularmente, a Medina e ao executivo por si liderado – o povo saberá responder nas urnas.

Nota: As opiniões expressas no presente artigo são formuladas a título estritamente pessoal, não vinculando as entidades em que o autor desempenha funções.