1 O conceito de modernidade – que está intimamente associado à crença na ideia de progresso – implica a diferenciação crescente dos diversos sectores da vida social. A modernidade identifica-se, desde o início do século XVIII, com a sociedade ocidental. Em conformidade com a concepção moderna, os progressos da ciência, da técnica e da razão confirmam-se mutuamente. A ideologia modernista triunfou, no campo das ideias, com o Iluminismo e, na esfera económica, com o capitalismo. A modernidade define-se como o triunfo da razão, como libertação e como revolução.

A modernidade atravessa uma crise: o movimento inicial de libertação enfraquece, a cultura, dominada pela técnica e pela razão instrumental, perde sentido e a ideia de sociedade separa-se da realidade da vida social. A modernidade decompõe-se e os fragmentos daí resultantes constituem o campo social e cultural da acção. A crença na existência de um princípio central, que imprime unidade e coerência à vida social, parece já não se adequar às sociedades contemporâneas, complexas, heterogéneas, fragmentadas, atravessadas por múltiplos conflitos e por lógicas de acção contraditórias. Os actores sociais deixam de ser definidos por uma lógica única, um papel, e a experiência da heterogeneidade substitui-se à da unidade.

A partir da década de oitenta do século XX, o confronto modernidade/pós modernidade dominou, no campo da teoria social, o debate intelectual nas sociedades ocidentais. O conceito de pós-modernidade – aceite ou rejeitado no plano compreensivo ou no plano normativo – representa genericamente o afastamento da razão e a separação da sociedade e dos actores sociais.

A ideia de progresso funcionou, praticamente até ao início da segunda guerra mundial, como uma espécie de axioma. Alguns sintomas de desencanto relativamente ao mito do progresso, incessante e imparável, ter-se-ão manifestado já no decurso do século XIX, mas a verdadeira descrença surgiu com o nazismo e acentuou-se depois, ao longo do século XX, nomeadamente com Hiroshima e Nagasaki, a guerra fria, o gulag, o terrorismo e as alterações climáticas. A chama reacendeu-se um pouco na última década do século XX, após a queda do muro de Berlim e o colapso da União Soviética, mas a profecia do fim da história e da entrada numa era idílica com um mundo totalmente pacificado e rendido ao modelo democrático-liberal, cedo se extinguiu.

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2 Na cena internacional, nas últimas décadas, a China tem consolidado a sua posição de grande potência económica, enquanto a Rússia, sentindo-se humilhada pelo chamado ocidente e não se conformando com a redução da sua área de influência e com o avanço da NATO para perto das suas fronteiras, começou a mostrar sinais cada vez mais inquietantes de não conformação com um papel subalterno. A inusitada invasão da Ucrânia representa, porventura, apenas uma etapa na concretização de um programa visando o ressurgimento da grande Rússia imperial. Nada poderá justificar a bárbara e irresponsável “operação especial” da Rússia, desencadeada a coberto da passividade da NATO, paralisada pelo receio de eclosão de uma guerra a uma escala mais global e pela chantagem das armas nucleares. Outras operações condenáveis, de menor escala, da mesma autoria, já ocorreram no passado recente (Tchetchenia, Geórgia, Síria, Crimeia), mas esta, pela sua dimensão e violência e pela sua localização, no coração da Europa, representa um atentado ignóbil ao direito internacional e uma verdadeira regressão civilizacional.

Perante esta guerra não há lugar à adopção de posições neutrais, porquanto as responsabilidades do agressor e do agredido não são equivalentes. Importa, no entanto, tentar compreender a posição da Rússia, ultrapassando a conjuntura e inserindo-a num contexto histórico, político e geoestratégico mais vasto. Embora sendo pertinente, não será este nem o tempo nem o lugar para empreender tal tarefa, que, aliás, ultrapassa as nossas competências. Assim, basta enfatizar, por ora, que, na Europa e em qualquer outro Continente, todos os países têm direito à sua segurança , e, nesta perspectiva, poder-se-á admitir que a Rússia considere a aproximação da NATO às suas fronteiras como uma ameaça. Esta percepção, embora admissível, não parece, contudo, muito credível: quem, verdadeiramente acredita, a não ser os incautos intoxicados pela propaganda, no chamado mundo ocidental e mesmo no espaço russófono , que a NATO pretenda atacar e subjugar a Rússia?

A narrativa da ameaça funciona como pretexto e esconde, porventura, um temor mais real, qual seja o da eventual instalação, junto das suas fronteiras, de regimes políticos democráticos que possam produzir um efeito de contágio na zona circundante e mesmo no interior da Rússia. A verdadeira ameaça seria, assim, de natureza política e cultural e não propriamente militar. O objectivo da invasão seria, então, o de vergar e subjugar a Ucrânia, impedindo-a de exercer a sua liberdade de escolha em termos de regime político e de modo de vida.

3 O poder atribuído a Putin tem sido manifestamente sobreavaliado. O perfil que se traça do líder russo releva tanto da psicologia como da mitologia: hipocondríaco, paranóico, psicopata, por um lado; autocrata, déspota, tirano, por outro. Tudo se passa como se a Rússia fosse governada por um “velho “louco que, isolado na sua torre de marfim e inebriado pela sua desmesurada hubris decide tudo solitariamente, apenas rodeado de um núcleo restrito de fiéis colaboradores.

Putin terá lido, ou alguém lhe terá resumido, a cartilha de Maquiavel, que retrata os homens políticos como são e não como deviam ser, apresentando uma visão realista dos fenómenos do poder e do funcionamento do Estado. Inspirando-se nela, aprendeu as regras práticas a que um Príncipe deve conformar-se, partindo do princípio de que o que verdadeiramente interessa é o resultado e que, para o alcançar, todos os meios usados são legítimos. Maquiavel aborda o tema da fundação de um Estado e de fazer nele reinar a ordem e estender o poder. A obra tipifica um homem de Estado sem escrúpulos, pérfido, mentiroso, enganador e astuto, para quem o fim justifica todos os meios, incluindo a violência e o crime.

Numa outra obra – A Servidão Voluntária – também escrita no século XVI , que, ao contrário de Maquiavel, não se dirige aos poderosos, aos que exercem a tirania, mas aos dominados, Etienne de La Boétie, interroga.se sobre o que justifica que o Príncipe, quer dizer o Estado, possa exercer sobre todos o seu poder. A resposta que o autor propõe, extremamente lúcida e adequada aos nossos tempos, baseia-se na ideia de que o poder só se mantém com a aquiescência daqueles sobre quem se exerce. A fonte do poder não está num desígnio providencial, nem na ordem natural: o poder é um fenómeno social e a política define-se como o campo das relações entre governantes e governados.

Para explicar a força e o segredo da dominação, La Boétie salienta, ainda, que o tirano não está isolado e só reina porque outros, abaixo dele, em grande número, partilham o seu reino. O UM nunca está só.

Putin também não está só, ou é apenas apoiado por alguns oligarcas. O núcleo restrito de indefectíveis servidores multiplica-se indefinidamente, por cadeias sucessivas de cúmplices, apparatchiks, a quem a tirania aproveita, assumindo o papel de tiranetes. Constrói-se, assim, uma pirâmide de servidões e de dependências, em que o poder absoluto do chefe supremo tem por contrapartida, numa atmosfera de terror e mentira generalizados, o poder de todos contra todos, tornando-se, assim, simultaneamente, todos vítimas e cúmplices da opressão.

Ao longo da sua história, a Rússia tem sido quase sempre governada por regimes despóticos. O povo russo tem, pelo menos aparentemente, convivido sempre bem com déspotas de vários matizes, verificando-se, historicamente, como que uma osmose entre o povo e os tiranos. Apenas durante um curto período, em 1917, durante o governo do partido socialista revolucionário, chefiado por Kerenksi, terá existido uma espécie de interregno, com a tentativa, efémera, de implantação de uma democracia representativa.

4 A invasão da Ucrânia assinala a entrada numa nova era, que marca o fim de um período de cerca de trinta anos, de “desanuviamento”, decorrido após o colapso da União Soviética e o fim da guerra fria. Presumivelmente, o mundo será menos globalizado, mais fechado, com menor crescimento e inflação. Em contrapartida da retracção e da menor liberdade em relação à circulação de pessoas e bens, ocorrerá, provavelmente, um maior fechamento em blocos, um aumento significativo das despesas em pessoal e armamento militar e talvez, maior segurança.

O nível de vida dos europeus diminuirá bastante. Em Portugal, dadas as nossas debilidades estruturais e dependência em relação ao exterior, nomeadamente alimentar e energética, a descida tenderá a ser mais pronunciada e os efeitos de uma economia de guerra serão bem mais penalizadores. Ainda sob os efeitos de uma pandemia e, agora, com uma guerra inesperada no continente europeu, a recuperação económica do país ficará, mais uma vez, adiada.

Sabemos como a guerra começou, mas desconhecemos como e quando irá terminar. As sanções produzirão efeitos negativos na economia e na sociedade russa, a médio e a longo prazo, mas será ilusório pensar que provocarão a queda de Putin. Mesmo que tal acontecesse, não se antevê que a sociedade civil russa tenha, de momento, dinamismo e capacidade suficiente para substituir o actual regime por outro mais aberto e vinculado ao cumprimento dos tratados internacionais e dos direitos humanos.

O efeito das sanções, na Europa e noutras regiões do globo, já é bem visível. A via das sanções estará perto de atingir o seu limite e o “pacote” a aplicar não poderá alargar-se muito mais, a não ser que exista, finalmente, a coragem de o estender ao campo do gás natural. A extensão das sanções pela EU para áreas como a informação e a cultura, copiando práticas censórias que condena quando utilizadas noutras latitudes, afigura-se-nos totalmente descabida e contraproducente.

Dada a enorme desproporção de meios, a Rússia irá ganhar a guerra e atingir os seus objectivos do ponto de vista militar. A vitória moral será, porém, da Ucrânia, que está a construir uma nação, consolidando a sua identidade nacional e a confirmar plenamente o seu direito à autodeterminação e à independência. O presidente Zelenski tem desempenhado um papel relevante, mas não está só, não é um herói solitário: tem sido muito bem acompanhado pelo povo ucraniano.