Poucas vezes terei começado a escrever um texto com tanta vontade de estar enganado. Poucas vezes resisti tanto tempo a dar conta de como não gosto daquilo que vou observando, e de como vou perdendo a esperança de possamos recuperar como gostaríamos desta crise para onde fomos atirados sem aviso prévio.

Não, não tem a ver com o vírus. O vírus será vencido, como todas as pandemias do passado foram vencidas. Pela vacina, pela imunidade de grupo, pelo peso da curva achatada, por qualquer coisa, é uma questão de tempo.

E não, também não é a economia pura e dura que mais me inquieta. Já estivemos nós e já estiveram outros muito pior e a economia levanta-se sempre.

O que suspeito que perdemos foi a fé na liberdade e na solidariedade e essas são mais difíceis de recuperar. Esses valores mostraram-se tão frágeis face ao medo – o medo que comandou e ainda comanda as nossas vidas – que começo a acreditar em todos os que foram escrevendo que esta pandemia será recordada pelas gerações futuras como um daqueles momentos de viragem da história, um evento de trágicas consequências como foram o assassinato do Arquiduque Francisco Fernando em 1914 em Sarajevo (que levou à I Guerra Mundial) ou a Conferência de Munique em 1938 (que não impediu a II Guerra Mundial).

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E não, não estou a prever nenhuma guerra mundial, estou apenas a ver que o destino previsível do século XXI – tornar-se um “século asiático”, com a China no centro – apenas chegará mais cedo. Para alguém que nasceu em Portugal, o primeiro país a estabelecer um entreposto comercial em território chinês, já lá vão quase cinco séculos, é o triste fechar de um ciclo.

Desde que a doença pousou em Itália, ainda corria o mês de Março, que se começou a perceber como tudo podia – e ia – correr mal. Como velhos senhores do Mundo, começámos por achar que não era connosco – achou a nossa directora-geral da Saúde como achou Trump, e achou Bolsonaro, e acharam as autoridades francesas ou espanholas, que ostensivamente ignoraram os avisos para comprarem material de protecção.

Quando vimos que afinal podia cá chegar, e infectar a Europa, corremos a fechar as fronteiras, nós que dias antes – horas antes – vociferávamos contra todos os que se atrevessem a ter controles fronteiriços. As discussões à mesa do orçamento europeu não mudaram de tom: os países mais endividados de mão estendida e tolhidos de movimentos, os mais “frugais” sem nenhuma vontade de mudar as regras. E não se houve sequer tempo para ter ilusões: todos os que gritaram pela União Europeia para pedir dinheiro não falaram da União Europeia na altura reabrir fronteiras – só se fosse conveniente.

Mas devo dizer que também até aqui nada disto me surpreende, e por isso nada disto me inquietaria demasiado. Apenas ficou mais uma vez demonstrado que a União Europeia não é uma entidade de pertença sentida como tal pelos povos europeus, que nos apertos o que conta é a soberania de cada nação, que os dirigentes europeus pensam sempre mais na política doméstica e que tudo o que não se faça nesse enquadramento chocaria de frente com a vontade dos eleitorados. A última coisa que houve em toda esta crise do coronavírus foi “patriotismo europeu” – mais depressa vimos cavar trincheiras e regressar a velhos estereótipos.

Contudo, repito, tudo isto era tão previsível como previsíveis eram os tweets disparatados do Presidente dos Estados Unidos.

Pior, bem pior, foi verificar como por todo o lado – ou por quase todo o lado – o medo tomou de tal forma conta dos espíritos que assistimos à imposição de medidas draconianas, de proibições e impedimentos nem sempre justificáveis, pois como notou o velho escritor Rentes de Carvalho, as autoridades “descobriram que nada põe o Zé Povinho tão depressa de joelhos, calado, sem vontade de refilar, como o medo da infecção”.

E com base em quê? Não seguramente na ciência. Se alguma coisa devíamos ter aprendido nos últimos meses é que a ciência não é omnipotente nem omnisciente. Não é só precisar de tempo para desenvolver uma vacina – é não saber responder sobre inúmeras dúvidas relativas ao funcionamento do vírus, à perigosidade do vírus, a como devemos defender-nos do vírus, a como se transmite o vírus, como se ganha ou não imunidade ao vírus e por aí adiante. A Ciência tem teorias que vai testando e rectificando, raramente tem certezas, sempre foi e será assim, mas aquilo que lhe foi pedido foram certezas.

Naturalmente correu mal, pois melhor ciência devia formular hipóteses enquanto a política ficava com os políticos. Só que como os políticos também têm medo, deixámos que tudo se misturasse, que se navegasse à vista, e eles foram olhando tanto para a evolução das curvas epidemiológicas como para os barómetros de popularidade. Confinámos assustados mas está à vista que a possibilidade de um regresso em força da epidemia no Outono ou no Inverno é quase certa. Aqui e além, noutras paragens, o vírus continua a mostrar que anda por aí, e entre nós nunca chegou a desaparecer. Mas agora dizem-nos que “não podemos voltar a repetir o confinamento que tivemos de impor durante o período do estado de emergência porque a sociedade, as famílias e as pessoas não suportarão passar de novo pelo mesmo”.

Mas o que é passar de novo pelo mesmo, já que nem todos estão a experimentar o mesmo, sobretudo não estão a sofrer o mesmo? A prioridade que demos à saúde, que por todo o mundo foi colocada à frente da economia, começa a obrigar-nos a reflectir não apenas sobre o preço do medo, mas sobre o sentido das sociedades em que vivemos. Bernard Henri-Levy, por exemplo, desafia-nos a pensar sobre até que ponto a obsessão com a saúde, reflexo da obsessão moderna com o corpo, não é no limite mais egoísta e egocêntrica do que a preocupação com a economia, pois esta é uma preocupação com os pobres que se tornaram invisíveis, e com o mundo, que não deixou de girar, nem de ter ditadores, nem de conhecer fomes e massacres, só porque o vírus de Wuhan anda por aí.

“Num certo ponto da História da modernidade, [os nossos contemporâneos] passaram a considerar a vida orgânica o bem supremo”, disse ele numa entrevista ao Observador. “É o cumprimento daquilo que previram os filósofos do século XIX, o cumprimento do reino do niilismo e da técnica, profetizados por Heidegger.” É assustador pois nesta nossa realidade “os novos deuses são o corpo e o eu, e um eu reduzido ao corpo e ao silêncio dos seus órgãos”.

No espaço aberto pela ditadura sanitária tudo pode então impor-se e nenhum debate é realmente levado a sério – ou tão a sério como devia ser. Por estes dias pode estar a mudar a natureza da União Europeia, mas a conversa não ultrapassa o nível muito rasteirinho dos “frugais” contra os demais. Nós por cá já assistimos a uma quase-nacionalização da TAP que pode criar responsabilidades tão ou mais pesadas que as do BES, mas antes dela se concretizar só se quis saber se havia ou não voos suficientes a partir do Porto. Entretanto um “sábio” entregou um relatório de 140 páginas sobre o futuro do país, mas para além de alguns artigos nos jornais, a coisa fica a aboborar no Verão, pois nem se sabe quando aterrará no Parlamento.

No mundo não é muito diferente. A Rússia de Putin é cada vez mais uma ditadura sem disfarce, a China de Xi uma potência com uma agressividade antes desconhecida. Do outro lado do Atlântico, os Estados Unidos parecem implodir, divididos entre radicalismos de sinal contrário. Ao mesmotempo, onde podem, da Turquia às Filipinas, os autocratas vão impondo a sua lei.

Volto por isso aonde comecei: gostava de estar enganado, mas quando pusermos o pesadelo do vírus para trás das costas não teremos apenas economias para reconstruir, empregos para recriar, indústrias para reinventar. Isso seria fácil. Teremos de ver se depois de tanto medo, de termos cedido tantas liberdades aos Estados, de termos pedido tanta protecção e tanto intervencionismo, ainda somos as mesmas sociedades abertas que nos orgulhávamos de ser.

Talvez não. E talvez não porque estávamos desarmados: antes já nos tínhamos rendido ao tal reino do niilismo e da técnica. Triste profecia, prouvera que errada.